Um texto sem tabus…
O ABERRANTE CONCURSO
PARA GÁUDIO DE MORCÕES…
Brasilino Godinho
Era uma vez uma senhora da televisão lisboeta. Maria Elisa, de sua graça. Um dia aconteceu-lhe uma encantadora gracinha… partiu para Londres. Bem relacionada no Ministério dos Negócios Estrangeiros (no qual, ao tempo, pontificava o Dr. Martins da Cruz), logo após o desembarque nas margens do Tamisa, fez-se conduzir à embaixada de Portugal. Uma vez chegada à sede da representação diplomática portuguesa, instalaram-na confortavelmente, como convinha a quem se dispunha a passar uma bela temporada de férias na capital britânica. Para se entreter, não se julgar desocupada e nem se sentir inútil, adornaram-na com o pomposo título e a tranquila função remunerada de adida cultural. Lá se manteve durante três anos. Recatadamente, sem visibilidade. Como se costuma dizer: muito senhora do seu nariz… Talvez fazendo trabalho de formiguinha. Pelos vistos, atenta ao que se fazia na televisão inglesa. Tudo indica com a preocupação de recolher ideias e modelos de programação para depois serem utilizados na televisão caseira. O que não admira num meio lisbonense que se vangloria de copiar o máximo das produções de alem fronteiras. E onde já se chegou ao cúmulo de elogiar e promover o plágio, desde que praticado por gente decorada com um título académico. É o velho hábito de muitos portugueses: Copiar! Copiar! Copiar! Um abuso que começa nos bancos da escola e onde, “in illo tempore”, tomou a designação de “copianço”. Coisa que decorre de: faltarem as ideias; ser fatigante estudar, pensar e criar - o que, também, requer conhecimentos que, às tantas, até faltam; exigir persistência; ser uma tentação própria de individualidades predestinadas ao sacrifício e risco de se assenhorearem dos labores alheios; ser recomendável a qualquer um que, fanático da comodidade e adepto entusiasta da facilidade, se refugie na cativante lei do menor esforço…
Acresce, que o acto de copiar está na moda. Além de bastantes sujeitos se julgarem muito chiques quando se põem de cócoras perante a estranja. O que dá azo a que ilustres cavalheiros e famosas damas se revejam e festejem, respectivamente, como vulgares macacos de pequenas e grandes imitações e atrevidas catatuas de estimação.
Voltando a D. Elisa. Há pouco, regressou à casa-mãe: a RTP - Rádio e Televisão de Portugal.
De imediato, se anunciou que trazia na bagagem um formato de concurso da BBC. Anúncio que não é inteiramente verdadeiro. Pois o dito já teria caído de pára-quedas na RTP. Na quarta-feira, dia 25 de Outubro de 2006, no debate sobre o concurso dos “Grandes Portugueses” ela, no calor da discussão, deixou escapar a seguinte dica: Há um ano foram efectuadas entrevistas de rua, aos populares, no sentido de serem escolhidos os nomes das personalidades incluídas na primeira lista das figuras elegíveis.
Tal “lapsus linguae” veio reforçar a impressão de o concurso “Grandes Portugueses” estar na mira da RTP há certo tempo e que vinha a ser preparado cuidadosamente. Daí, que a decisão de não incluir os nomes de António Oliveira Salazar e Marcelo Caetano no rol dos concorrentes terá sido propositada com vista a provocar a exagerada controvérsia. E aproveitando o ambiente de contestação ao poder político que se vive em Portugal, suscitar a intervenção do maior número de portugueses. Perguntar-se-á: Qual o objectivo? - Dar projecção ao espectáculo televisivo. Conjugar expedientes para alcançar o ambicionado êxito. Antevendo um final arrebatador. Nele, não faltarão as loas à iniciativa e a festa de consagração do grande triunfo da apresentadora: a insuperável D. Maria Elisa.
No entanto, o concurso “Grandes portugueses” é o paradigma da indigência mental que grassa
O ensino, o interesse e, até, a veneração pela História de Portugal, o conhecimento e o estudo das pessoas que se notabilizaram pelas suas qualidades, feitos e obras, devia cultivar-se e desenvolver-se nas escolas e nos meios de comunicação social com outros tipos de programas verdadeiramente aliciantes e superiormente elaborados.
Depois, pôr figuras marcantes da nação portuguesa, umas coevas, outras de tempos mais ou menos remotos, em disputa num plano virtual e numa vertigem de fantasia e delírio de imbecilidade, sem a elucidação decorrente do saber adquirido pela investigação e pelos ensinamentos dos compêndios, pela leitura dos tratados e das obras literárias e do conhecimento testemunhal das personalidades e dos factos ou dos relatos sérios ao dispor da comunidade no caso dos distinguidos estarem vivos, não faz nenhum sentido lógico e coerente; quaisquer que sejam as circunstâncias que a facilitem, a condicionem, a limitem ou, mesmo, que a impeçam de forma determinante.
E nesse preciso aspecto ressalta uma situação de suprema importância. Portugal tem uma população de milhões de analfabetos primários, funcionais e culturais. Sem dúvida, contam-se por milhões os indivíduos que não praticam a leitura e a escrita ou não percebem o que lêem ou ouvem. Se por aberração admitíssemos alguma utilidade a este tipo de consulta popular o seu alcance, à partida, cairia por terra. Inegavelmente, pelo impedimento resultante da grandeza desse quadro de crónico analfabetismo. Não é pela via de ruidosas e deslumbrantes sessões de circo mediático e pela prática de incríveis actos burlescos que elevamos o padrão cultural da população portuguesa. Ou que a aliciamos para os bons hábitos da leitura e da aquisição do saber.
Não é sério, nem dignificante, contemplar a ignorância das pessoas e ignorar a extrema dificuldade de cada qual se avaliar a si próprio, de julgar os outros e sopesar as atribuições das qualidades, das obras, das carências e defeitos das individualidades, de destrinçar os diferentes e complexos graus de importância relativa entre as díspares áreas de intervenção em que se notabilizaram os escolhidos.
Igualmente, neste concurso, se evidencia um grande desrespeito pela memória dos mortos. Se nem em suas vidas eles estiveram envolvidos à compita de apuramento de qual seria o mais notável nas suas respectivas épocas, é procedimento inqualificável da televisão estatal chamar à colação a memória dos seus nomes e envolvê-los num pleito descabido e idiota. Sem dúvida, um abuso inadmissível. Uma desonestidade intelectual! Digamos: Uma gratuita inutilidade. Um ultrajante atentado ao valor e à dignidade de muitos portugueses notáveis.
Aliás, pretender fazer uma classificação de grandes portugueses e entre eles designar o maior é estultícia. Uma absoluta impossibilidade. Que advém das variáveis atinentes ao objecto da inglória tarefa. E que são imensas. Todas elas de inatingível concretização à escala humana. Em traços largos, sobressaem: a temporalidade, a valorização e supremacia de áreas entre si mais ou menos correlacionantes, a indefinição das matérias e dos critérios de avaliação, a destrinça das qualidades, das aptidões, dos méritos das acções, dos defeitos e lacunas dos escolhidos, das insuficiências relacionadas à incomensurável falta de abrangência de saberes, de factores subjectivos, de predisposições mentais e faculdades de alma dos eleitos e dos eleitores. Algo jamais ao alcance dos agentes avaliadores, mesmo que se tratasse de um colégio de sábios. Igualmente, admitindo - com interesseira vontade - que existam sábios...
A Rádio e Televisão de Portugal se estivesse realmente empenhada em promover a divulgação da História de Portugal e em elevar o nível cultural dos cidadãos produziria uma consistente programação adequada ao propósito. Certamente que não teria acabado com as emissões de peças de teatro e programas de divulgação do regular uso da língua portuguesa e de tantos outros de natureza cultural. Também não relegaria os poucos tempos de antena do campo da Cultura existentes para horários da madrugada, de escassa audiência.
A RTP, estação de serviço público, está mais interessada nos medíocres espectáculos, nas paródias do circo político e nos índices das audiências.
Resumindo: O concurso “Grandes Portugueses” é um desprezível passatempo. De inconcebível ocupação do lazer. Uma brincadeira de mau gosto!... Para gáudio de morcões…
Mas, saliente-se: Existem outras maneiras de, com elevação e sentido de servir o público, entreter os telespectadores. Dessas, não cuida a RTP.
(http://quintalusitana.blogspot.com)
Post-scriptum – As considerações aqui expressas relativamente ao concurso “Os grandes Portugueses” também se aplicam ao concurso “Os piores portugueses”. Em qualquer deles assenta a mácula de se ir longe de mais no desrespeito para com vivos e mortos.
Brasilino Godinho
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