Recebemos por correio electrónico o texto (aqui apenso) que, sendo do filósofo José Gil, se constitui como documento de muita importância na denúncia do processo de destruição de Portugal.
Brasilino
Godinho
O roubo do presente
José Gil
( http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Gil )
Há
pelo menos uma década e meia está a ser planeada e experimentada
quer a nível do nosso país, quer na Europa e no mundo uma nova
ditadura - não tem armas, não tem aparência de assalto, não tem
bombas, mas tem terror e opressão e domesticação social e se
deixarmos andar, é também um golpe de estado e terá um só partido
e um só governo - ditadura psicológica.
"Nunca
uma situação se desenhou assim para o povo português: não ter
futuro, não ter perspectivas de vida social, cultural, económica, e
não ter passado porque nem as competências nem a experiência
adquiridas contam já para construir uma vida. Se perdemos o tempo da
formação e o da esperança foi porque fomos desapossados do nosso
presente. Temos apenas, em nós e diante de nós, um buraco negro.
O
«empobrecimento» significa não ter aonde construir um fio de vida,
porque se nos tirou o solo do presente que sustenta a existência. O
passado de nada serve e o futuro entupiu. O poder destrói o presente
individual e coletivo de duas maneiras: sobrecarregando o sujeito de
trabalho, de tarefas inadiáveis, preenchendo totalmente o tempo
diário com obrigações laborais; ou retirando-lhe todo o trabalho,
a capacidade de iniciativa, a possibilidade de investir, empreender,
criar. Esmagando-o com horários de trabalho sobre-humanos ou
reduzindo a zero o seu trabalho. O Governo utiliza as duas maneiras
com a sua política de austeridade obsessiva: por exemplo, mata os
professores com horas suplementares, imperativos burocráticos
excessivos e incessantes: stress, depressões, patologias,
border-line, enchem os gabinetes dos psiquiatras que os acolhem. É o
massacre dos professores. Em exemplo contrário, com os aumentos de
impostos, do desemprego, das falências, a política do Governo rouba
o presente de trabalho (e de vida) aos portugueses (sobretudo jovens)
O
presente não é uma dimensão abstracta do tempo, mas o que permite
a consistência do movimento no fluir da vida. O que permite o
encontro e a intensificação das forças vivas do passado e do
futuro - para que possam irradiar no presente em múltiplas
direcções. Tiraram-nos os meios desse encontro, desapossaram-nos do
que torna possível a afirmação da nossa presença no presente do
espaço público. Actualmente, as pessoas escondem-se, exilam-se,
desaparecem enquanto seres sociais.
O
empobrecimento sistemático da sociedade está a produzir uma
estranha atomização da população: não é já o «cada um por
si», porque nada existe no horizonte do «por si». A sociabilidade
esboroa-se aceleradamente, as famílias dispersam-se, fecham-se em
si, e para o português o «outro» deixou de povoar os seus sonhos -
porque a textura de que são feitos os sonhos está a esfarrapar-se.
Não há tempo (real e mental) para o convivio. A solidariedade
efectiva não chega para retecer o laço social perdido. O Governo
não só está a desmantelar o Estado social, como está a destruir a
sociedade civil. Um fenómeno, propriamente terrível, está a
formar-se: enquanto o buraco negro do presente engole vidas e se
quebram os laços que nos ligam às coisas e aos seres, estes
continuam lá, os prédios, os carros, as instituições, a
sociedade. Apenas as correntes de vida que a eles nos uniam se
romperam. Não pertenço já a esse mundo que permanece, mas sem uma
parte de mim. O português foi expulso do seu próprio espaço
continuando, paradoxalmente, a ocupá-lo. Como um zombie: deixei de
ter substância, vida, estou no limite das minhas forças - em vias
de me transformar num ser espectral. Sou dois: o que cumpre as ordens
automaticamente e o que busca ainda uma réstia de vida para os seus,
para os filhos, para si.
Sem
presente, os portugueses estão a tornar-se os fantasmas de si
mesmos, à procura de reaver a pura vida biológica ameaçada, de que
se ausentou toda a dimensão espiritual. É a maior humilhação, a
fantomatização em massa do povo português.
Este
Governo transforma-nos em espantalhos, humilha-nos, paralisa-nos,
desapropria-nos do nosso poder de acção. É este que
devemos, antes de tudo, recuperar, se queremos conquistar a nossa
potência própria e o nosso país."
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