Um texto sem tabus…
TANTOS COM SUAS SENTENÇAS
SOBRE “O QUE ESTÁ EM CAUSA”…
Brasilino Godinho
“Não há fome que não dê em fartura”. Há longo tempo que em Portugal se mantém a discussão sobre a despenalização do aborto. Esgrimem-se argumentos, proferem-se acusações, disponibilizam-se opiniões, sobrelevam as paixões entre os dois pólos da discórdia: à direita, o “não” da discordância e da condenação da entidade feminina; à esquerda, o “sim” da concordância e do respeito pela dignidade da mulher. A lengalenga do costume. E não se passava da cepa torta.
Até que se chegou, imprevistamente, no decurso da semana que precedeu a data do referendo (11 de Fevereiro de 2007), a um momento providencial em que um “inteligente” quis pôr ordem na confusão das ideias e na algaraviada. Alguém inspirado teve “atitude”, como se diz na gíria futebolística. Nada mais, nada menos que a ideia brilhante de sintetizar a questão do aborto em cinco palavras: “o que está em causa”. Uma rica expressão que deu avantajado pano para muitas mangas talhadas ao feitio de cada indivíduo. O êxito não podia ser maior. Foi um estrondoso sucesso…
A qual, pelos vistos, utilíssima e oportuna ocorrência aconteceu no início do período de campanha eleitoral actualmente em curso - um tempo aproveitado pelos dois campos do “sim” e do “não” para arregimentarem adeptos e eleitores predispostos ao cumprimento do dever cívico de, no dia do sufrágio, irem à boca da urna depositar o voto correspondente às respectivas posições. E com um registo estranho: o de uma situação que, principiando com alguns afloramentos ocasionais de tímida revelação, rapidamente se transformou numa prática constante, irreflexa e descarada, algo irredutível.
Passou o tempo da campanha a ouvir-se a expressão: “o que está em causa”. Por tudo que era sítio e meio de comunicação não se ouvia outra coisa supostamente mais convincente. Nos jornais; nas entrevistas de rua; nos debates radiofónicos; nos encontros de personalidades e desencontros noticiosos efectuados nas televisões; nas tertúlias dos cafés; nas conversas às mesas dos restaurantes; nas acaloradas intervenções dos deputados na assembleia dos cujos; nos corredores dos ministérios; à beira dos balcões dos estabelecimentos; às portas das autarquias; nos colóquios realizados nas aulas magnas das universidades; nos oaristos entre noivos e conjugues; nas maquiavélicas palestras do professor Marcelo; nas conversas de contra-estímulo do António Vitorino com a inefável Judite de Sousa da RTP; nas reclamações da Arqª. Helena Roseta; nas violentas declarações do Dr. Daniel Serrão; nas opiniões ásperas, sem mel nem doçura, do Sousa Tavares; nas reuniões do Episcopado em Fátima; nas alocuções do cardeal-patriarca; nos sermões dos bispos; nas homilias dos padres durante as missas dominicais; nos delico-doces escritos do Arqº. José António Saraiva; nas diatribes dos políticos; nas divagações das ministeriais figuras; nos diálogos dos intelectuais alfacinhas; nos alvoroços ruidosos das peixeiras da lota de Matosinhos; nas manifestações espontâneas das vendedeiras do mercado do Bolhão; nos almoços e jantares das clientelas partidárias; nas observações surpreendentes da Zita Seabra; nos pacatos retiros de colegiadas das grandes fraternidades; nos intervalos dos espectáculos de teatro e de cinema em Lisboa; nas instalações das polícias; nos salões de cabeleireiras sitos na região da Grande Lisboa; nos bate-papos ocasionais travados durante viagens
Era uma barafunda completa. Parecia que todos estavam possuídos de um estado de graça. A suprema faculdade de saberem aquilo que estava
Dos vulgares cidadãos se espera que, lúcidos, não se tenham estonteado pelo espectáculo ruidoso e, algumas vezes, obsceno, horrendo, indecentemente associado a uma campanha de disputa pela primazia de uma corrente de opinião. Diga-se, campanha pessimamente desenvolvida, ao arrepio da elevação exigível numa Democracia.
Desejável teria sido que, com dispensa da campanha, o resultado do referendo correspondesse ao somatório de opções de consciência de cada cidadão. O qual, livre de pressões, de tutelas religiosas, de influências políticas, inteiramente mobilizado pela inteligente compenetração dos seus direitos e obrigações cívicas, agiria por si próprio. Sem muletas, com repúdio de espúrias orientações de voto.
Mais: estados de barrigada, específicos das mulheres que sentem no corpo e na alma a acuidade e o drama das situações, a expressão dos sofrimentos físicos e as sequelas psíquicas, geralmente associadas a uma interrupção de gravidez, deveriam ser elas - e só elas - a pronunciarem-se em referendo quanto à despenalização do aborto.
Enfim, não esqueçamos que esta é a Nação que carrega uma pesada herança de rígidas doutrinas; cínicas práticas obscurantistas, censuráveis tradições; de equívocos métodos nas áreas da política, administração, ensino, educação, investigação, desenvolvimento; de abusivos costumes; e de nefastos garrotes culturais… que lhe determinaram o angustiante presente e condicionam o indeciso futuro. O que não deixa de ser uma dramática contradição com o esplendor atingido na era dos Descobrimentos e com os altos padrões de qualidade da ilustre gente que, no nosso tempo, se evidencia nos mais variados sectores de actividade e muito prestigia o País.
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