Em tempo de compasso…
UM BASTONÁRIO ENREDADO
NAS SUAS CONTRADIÇÕES …
Brasilino Godinho
01. A confusão e a inconsistência da fala do bastonário
O bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho Pinto, há bastante tempo que vem mantendo uma veemente polémica com os juízes. Acusa-os de exorbitarem nos poderes e prerrogativas da função judicial. Teve, agora, mais um pretexto para deitar achas na fogueira da disputa em curso.
Segundo o despacho da Agência Lusa, que estamos transcrevendo, na passada sexta-feira o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses anunciou que, caso a proposta conhecida do Orçamento do Estado seja aprovada, vai pedir a fiscalização da sua constitucionalidade porque “ataca de modo feroz” os portugueses, violando “o princípio da confiança dos portugueses no sistema fiscal”.
Instado a comentar essa posição, o citado bastonário afirmou que “a questão da constitucionalidade é uma questão jurídica e o Orçamento e as medidas de austeridade que o Governo tem vindo a tomar são políticas. São medidas muito duras, mas penso que não violam a Constituição”.
Igualmente, defendeu a tese de “que não cabe aos tribunais pronunciarem-se sobre medidas de austeridade do Governo, dada a sua natureza política, dentro do princípio da separação de poderes”.
“Salvaguardada a natureza política da questão, Marinho Pinto classificou a acção do Governo como “um crime de lesa pátria” por impor sacrifícios às famílias em vez de os procurar aliviar, devido a razões ideológicas que “omitiu” na campanha eleitoral”.
Mais disse: “Se
uma pessoa pode pagar uma dívida em dez anos porque é que vai pagar em um? É
muito mais sacrifício. Porquê esta pressa?
Porque é que
este Governo vai além da ‘troika’? Devia estar a reclamar mais prazo para pagar
as dívidas, em vez de estar a concentrar o pagamento com sacrifícios
insuportáveis para as famílias portuguesas e nem imagina a revolta que está
instalada individualmente.
Percebe-se
agora a violência de algumas revoluções de que a História nos dá exemplo.
É
por medidas destas que humilham o povo e o sacrificam para além dos limites,
sem sentido”. (Fim de citação, com manchas coloridas e partes
sublinhadas pelo autor da presente crónica).
02. Algumas notas e
breves comentários
As considerações do bastonário acerca
das medidas de austeridade e dos sacrifícios impostos aos portugueses pelo
governo, com enorme rudeza, descomunal insensibilidade e imenso despudor, são
pertinentes e objectivas. Nada a objectar.
Mas no capítulo de propor o alheamento
do poder judicial face à gravidade da situação e às terríveis consequências que
atingem milhões de cidadãos e cidadãs deste país, o advogado Marinho Pinto, bastonário
da Ordem dos Advogados, falha na objectividade e cai, desamparadamente, na incoerência.
Por que sendo notório e incontroverso
facto que a acção do governo é extremamente agressiva e danosa para a grei
portuguesa até ao ponto de o bastonário da Ordem dos Advogados a classificar de
um crime de lesa
pátria, então este muito marcado delito perpetrado contra o poder
soberano do Estado e, também, contra as vidas e os direitos dos cidadãos consagrados
na Declaração Universal dos Direitos do Homem e inclusos na Constituição da
República Portuguesa, não pode ficar impune e terá de ser julgado. E se é assim
que haverá de suceder no Estado de Direito que ansiamos para o nosso país, só
um tribunal judicial terá competência para o fazer. Aqui, focados neste ponto,
relembramos que, antes, o bastonário se desdizia e negava aos juízes esse
hipotético julgamento e até a apreciação preventiva do caso suscitado pelo
presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses.
Igualmente, vazia de sentido a afirmação
do bastonário: “São medidas muito duras mas
penso que não violam a Constituição”.
Antes de mais, parece-nos que este
fraseado releva de algo intrigante que se está generalizando a personalidades
em voga na comunicação social. Com frequência tais criaturas vêm à praça
pública dizer: “eu penso”. E repetem:
“eu penso que”. Ou contrapõem: “mas penso”. Como se estivessem com o
rei na barriga e contemplando o próprio umbigo… Decerto, em rasgo de
voluntarismo saloio, julgando-se detentores de imanente, ímpar, sabedoria.
Igualmente, possuídos de decisiva autoridade
De bradar aos céus… Que vacuidade! Convenhamos
que, naqueles específicos contextos, são expressões autistas absolutamente
deslocadas e sem nexo. Ademais, nada de conclusivo acrescentam ao “discurso” e
a que, normalmente, nem se liga importância; até por elas já estarem gastas
pelo inglório e inconclusivo uso que lhes tem sido dado pelos recalcitrantes
palradores - os festejados artífices da menor arte de muito falar sem nada
dizer de substancial. É evidente que os mesmos pensam que tal referência ao seu pensar induz nos ouvintes ou nos leitores alguma credibilidade às
ideias que expendem junto aos microfones ou nas prosas com que enchem colunas
dos jornais. Isto é um tiro que, persistentemente, lhes sai pela culatra; visto
que, na maioria das vezes, pensam mal – o que para além de nulos efeitos na
interpretação dos enunciados, suscita repulsa ao leitor atento que, nem sendo
mentecapto, preza, cultiva e expressa com o engenho ao seu alcance, a lógica
conceptual, a harmonia discursiva, o rigor linguístico, a cintilante
transparência, a integral realidade do ser, o relevante factor temporal ou
circunstancial, a serena objectividade na análise, a eficaz sageza na
formulação do pensamento. Pelo que, facilmente, se admite que melhor seria não pensarem… Ou que se abstivessem de
aludirem a essa faculdade própria, tão deprimentemente exposta em diversos e
indistintos lugares…
A propósito, seja-nos permitido um
aparte: certamente, estamos confrontados com um circunstancial caso de défice
cultural, decorrente de se ter acintosamente excluído a Filosofia dos
currículos escolares.
Retomando o tema, anotamos que o
bastonário procedendo em desconformidade com a imprescindível justeza adequada
a uma coerente apreciação do contexto do seu “discurso”, também pensa mal
quando pensa que as medidas não violam
a Constituição.
Cremos que o vulgar cidadão ficou perplexo
quando se deu conta de que o licenciado em Direito, Martinho Pinto, advogado,
bastonário da Ordem dos Advogados, pensa
que as tais medidas não violam a Constituição. Ele pensa que… ou seja: supõe que… Nem tem a certeza do conteúdo
do texto fundamental do (por um momento, admitamo-lo em Portugal…) Estado de
Direito. Pior ainda: ele, advogado tão assertivo na rejeição dos juízes e na
afirmação dos seus eventuais deslizes praticados na interpretação e cumprimento
das leis, surpreendentemente manifesta-se muito inseguro no conhecimento da
Constituição, a suprema lei do Estado português. De pasmar!
Outrossim, registamos que o advogado
Marinho Pinto só agora - tarde e a más
horas - percebeu “a violência de algumas
revoluções de que a História nos dá exemplo”. Incrível!...
Porque o cidadão em causa é uma entidade
influente na sociedade portuguesa, acrescentamos: simplesmente deplorável!
03. O governo prossegue deliberada violação da
Constituição
Resta-nos mencionar a nossa firme
convicção: a acção do governo viola vários preceitos da Constituição da República Portuguesa, a seguir
descriminados:
-
ARTIGO 9.º - Tarefas fundamentais do Estado,
Alíneas
a), b), c) e d).
- ARTIGO
12.º - Princípio da universalidade,
n.º 1.
-
ARTIGO 13.º - Princípio da igualdade,
n.º 1.
-
ARTIGO 18.º - Força jurídica,
n.ºs
1, 2 e 3.
-
ARTIGO 19.º - Suspensão do exercício de direitos,
n.º
1.
O
ARTIGO 21.º Estabelece o direito de resistência.
Nos termos
seguintes:
“Todos têm direito
de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos,
liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não
seja possível recorrer à autoridade pública”.
Na situação vigente é a própria
autoridade pública – o executivo – que se assume como agente agressor e que dá
as ordens que, consubstanciadas nas chamadas medidas de austeridade, ofendem os
direitos dos cidadãos e as garantias que lhes são reconhecidas pela
Constituição. Para além das ofensas existem as contínuas agressões, intrínsecas
aos seus conteúdos, que se reflectem na precária qualidade de vida do
indivíduo; a qual agressividade pode atingir alto grau de intensidade com
profundas consequências; as quais, se traduzem na deterioração dos estados
físico e psíquico do cidadão de menores recursos, do desempregado, do
reformado, do pensionista, do idoso, do trabalhador, do funcionário público. E
que, no limite de sobrevivência, já verificado em inúmeros casos, podem
arrastar as pessoas para a morte. Tudo isto implica a tremenda responsabilidade
dos governantes e determina o necessário procedimento criminal por parte do
poder judicial. Cabendo, neste aspecto, oportunidade e motivação à
imprescindível actuação dos serviços do Ministério Público no sentido de abrir
os tempestivos processos de incriminação.
O
ARTIGO 22.º Responsabilidade das autoridades públicas.
Eis a transcrição: “O Estado e as demais
entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os
titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões
praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que
resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para
outrem”.(Nossos
sublinhados).
Este artigo tem sido esquecido, muito
convenientemente, pela classe política. É mister que os cidadãos tomem
conhecimento do seu teor e se disponham a exigir responsabilidades aos
governantes. Nas actuais circunstâncias só há lugar para a tolerância zero
relativamente aos grandes responsáveis da dramática situação em que se encontra
Portugal e as suas atormentadas gentes.
Percam-se as ilusões que subsistem por
aí. Enquanto os detentores do Poder, que dele abusam a seu bel-prazer, não
forem responsabilizados pelos seus nefastos actos não teremos um Estado de
Direito. Sequer, democrático. Sim! Porque Democracia não se confunde com a
bandalheira que grassa no campo político/administrativo de Portugal.
Fim
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