VITRINA 7
DAS OBRAS DE BRASILINO GODINHO
22 de Março de 2021
OS MÁGICOS SAPATINHOS DO JOÃOZINHO
Conto de Natal
Autor: BRASILINO GODINHO, p.5, 2019
O conto é focado em dois espaços:
– geográfico: numa aldeia do interior da serra transmontana;
- temporal: nos anos 30/40 do século XX.
Pretendi, em breves traços, apresentar um quadro da vida rural naquela época, para proporcionar aos leitores informação susceptível de satisfazer a eventual curiosidade das novas gerações. Tive a preocupação de não cair na pieguice religiosa.
OS MÁGICOS SAPATINHOS DO JOAOZINHO
Naquele tempo dos anos 40, do século XX, na aldeia de Pedras Secas, bem no interior da serra transmontana, as vidas dos aldeões não eram fáceis e havia muitas faltas dos géneros alimentícios e de outros meios essenciais à regular existência das pessoas. No centro da aldeia, próximo da igreja paroquial e da residência do abade Florêncio das Neves e paredes-meias com a casa do regedor Anastácio Flores, residia o trabalhador agrícola Américo Nogueira e sua mulher Joaquina da Conceição, cuja família tinha a particularidade de ser muito pobre. Tão pobre, que o abade Florêncio mantinha o hábito de a toda a hora dizer, a quem o queria ouvir, que a família do Américo Nogueira era de uma pobreza franciscana. Até era verdade. Mas que aos ouvidos dos visados, Américo e Joaquina, tais falas do abade soavam muito mal, bastante os envergonhava e lhes causava imensa tristeza e alguma revolta por não terem nascido de rabo ao alto, como era crença acontecer aos filhos dos poucos ricaços que existiam na terra.
O abade Florêncio, pessoa de poucas falas, tinha aspecto taciturno que não despertava a simpatia de ninguém. As crianças quando, brincando na rua, o viam aproximar fugiam para bem longe, afastando-se o mais possível dele; tal era o medo que lhe tinham. As deambulações do abade eram muito raras. Ele, habitualmente, levantava-se cedo, tomava o pequeno-almoço e logo se dirigia à igreja para rezar a missa matinal e orientar as aldeãs, que mais frequentavam a eucaristia, conhecidas por “ratas da sacristia”, na complicada e exigente tarefa de ornamentação dos três altares com ramos de flores. O que para as devotas mulheres representava um pesado sacrifício diário, visto que o abade Florêncio era muitíssimo rigoroso na configuração estética dos arranjos florais. Logo que concluída a sua exaustiva coordenação dos trabalhos das dedicadas fiéis, abade Florêncio voltava para casa onde as suas duas irmãs lhe forneciam o almoço e o copo do vinho que todos os anos era parte da côngrua paga, em Outubro, pelos paroquianos. Após o repasto, o abade Florêncio dormia uma larga sesta que, terminada a meio da tarde, dava azo a sua reverência se entreter a fazer paciências com cartas de jogar, prosseguidas sem desfalecimento até cerca da hora do jantar. Terminada a refeição, abade Florêncio conversava um pouco com as manas, após o que recolhia-se ao quarto, onde procedia à leitura e fugaz meditação do breviário, seguida da deita. Ainda sobre o abade Florêncio há que referir as suas manas. Eram muito caseiras, esquivas; e tanto, que ninguém conhecia os seus nomes. Só saíam de casa no domingo de Páscoa e na noite de Natal para assistirem às celebrações religiosas do mano abade. Causava estranheza na população o seu viver isolado e as ausências nas missas dominicais. Elas só eram vistas de vez em quando às janelas da casa, espreitando por detrás das cortinas. Isso suscitava perplexidade nos habitantes da aldeia, mas ninguém ousava interpelar o abade Florêncio, pois era sobejamente conhecido como pessoa intratável quanto a assuntos respeitantes à sua pessoa ou que se prendesse, com a família, de que só se conhecia o par das irmãs.
Aliás, os paroquianos, não esqueciam um episódio que acontecera com o abade que os deixou prevenidos do seu áspero feitio. Geralmente, à quinta-feira, pelas 17 horas, realizava-se na igreja o ensino da catequese ministrado pela jovem Crisálida dos Santos. Era costume do reverendo Florêncio aparecer na igreja pelas 18 horas; altura em que as crianças saíam da catequese. De imediato, o abade Florêncio e catequista Crisálida iniciavam um diálogo de regular duração de uma hora.
Em dada altura, tais diálogos começaram a ser comentados, principalmente, pela sr.ª Estefânia das Dores, conhecida “rata de sacristia” e pela sr.ª Clementina das Bem-Aventuranças. De pronto, gerou-se um falatório bastante desfavorável ao pároco Florêncio. Mas o pior não tardou a acontecer. A sr.ª Estefânia, decerto movida por esquisitos ciúmes, iniciou a prática de se aproximar do casal dialogante e interromper a conversa, colocando questões relacionadas com os arranjos das flores no dia seguinte. O abade, nas duas primeiras ocorrências, contrariado, respondeu às perguntas. Porém, a sr.ª Estefânia estava empenhada em perturbar o sossego e regular continuidade das conversas de abade Florêncio com a menina Crisálida. E logo, na quinta-feira seguinte, a sr.ª Estefânia, muito senhora de si, volta junto do casal e interpela abade Florêncio com nova questão de arranjos florais. Era demasiado abuso de confiança. E o padre explodiu com violência e sonoridade que repercutiu por toda a igreja: “A senhora fica sabendo que é má-criação interromper as conversas das pessoas. Também fica proibida de repetir esta falta de respeito. A partir de hoje está dispensada de trabalhar nesta igreja. Agora, desapareça da minha vista!” A notícia deste acontecimento propagou-se rapidamente. Toda a gente ficou sabendo que o senhor abade não era homem para brincadeiras que minimamente o beliscassem.
Importa referir que na aldeia de Pedras Secas havia três pessoas importantes: Abade Florêncio, regedor Anastácio Flores e sr.ª Clementina das Bem-Aventuranças. O regedor, Anastácio Flores, era um cidadão, de meia-idade, muito querido e respeitado na aldeia. Cabia-lhe zelar pela ordem pública. Quando havia imperiosa necessidade de prender delinquentes tinha a obrigação de os algemar e transportar na sua carroça, acompanhados pelos cabos de polícia José Periquito e Flausino da Silva, até à vila onde os entregava no posto da GNR (Guarda Nacional Republicana) e recebia o termo comprovativo da missão policial cumprida a Bem da Nação - segunda o preceito legal vigente ao tempo
A sr.ª Clementina das Bem-Aventuranças possuía em casa um consultório de atendimento a pessoas sofrendo de mau-olhado, de invejas, de amores contrariados. Sobretudo, era pessoa especializada em dirimir desavenças entre casais e namorados.
Por motivo das suas aptidões esotéricas e de ter propalado o falatório sobre os diálogos do abade com a catequista despertara nele indisfarçável antipatia e era causa de algum atrito nas relações do sacerdote com o regedor; pois que abade Florêncio pretendia que regedor Anastácio pusesse cobro às consultas da senhora Clementina e a denunciasse no posto da GNR. Porém, o regedor nunca acedeu aos desejos do pároco, o que gerou afastamento entre ambos. Mas o dado curioso da questão é que a faceta alcoviteira da sr.ª Clementina foi factor decisivo para o Abade Florêncio ter, de-repente, passado a tratá-la amistosamente. Porque às tantas, abade Florêncio deu-se conta que lhe convinha estar bem relacionado com ela, não fosse dar-se o caso do falatório a seu respeito chegar ao conhecimento do senhor bispo Aniceto da Cruz e ele o transferir para outra paróquia.
E de facto e de jeito às conveniências do padre Florêncio, assim aconteceu. E bastante agradáveis passaram a ser as relações entre as quatro pessoas envolvidas na trama que existia. Assim, de maneira simples foi estabelecida a concórdia de abade Florêncio com regedor Anastácio e sr.ª Clementina e, também, prosseguidas, sem interrupções e sem temores, as ternurentas conversas do abade Florêncio com a catequista Crisálida.
Entretanto, Américo Nogueira e Joaquina Conceição foram pais de encantador bebé, que baptizaram com o nome de João da Conceição Nogueira.
O bebé, carinhosamente tratado por Joãozinho, foi crescendo e com cinco anos de idade já era uma criança que, habitualmente, brincava no quintal da residência do vizinho regedor, com os filhos dele: Fernandinho e Joaninha, quase da sua idade. Decorria a quadra natalícia do ano de 1942, e eis que o Joãozinho recebe da Joaninha a novidade da existência do Pai Natal. Um velhote de barbas brancas e trajado de vermelho que, antes da Missa do Galo, vinha à aldeia trazer prendas para os meninos. Joãozinho ficou muito admirado e logo, quando regressou a sua casa foi ao encontro da mãe para lhe perguntar se o Pai Natal também viria bater à sua porta. A mãe respondeu-lhe que não tinha a certeza se ele apareceria.
O Joãozinho ficou numa grande expectativa. No dia seguinte desabafou com os seus amiguinhos: “gostava que o Pai Natal me oferecesse uns sapatinhos”. E razão tinha o Joãozinho para tão arreigado desejo. Pois que sempre usara velhas sandálias, enquanto os seus amiguinhos sempre calçaram sapatinhos.
Então aconteceu um milagre de Natal. O vizinho, Anastácio Flores, num belo dia fez-se encontrado com o casal Américo e Joaquina e lhes perguntou delicadamente se não se importavam que ele comprasse um par de sapatos para o Joãozinho – o que estava facilitado por, decerto, ele calçar o mesmo número do seu filho. E que a oferta seria apresentada como trazida pelo Pai Natal. Américo e Joaquina agradeceram vivamente e rejubilaram.
Joãozinho, quase chegando a festiva data, ia insistindo com os pais para que lhe dissessem se o Pai Natal não se esqueceria dele. De facto, o Pai Natal não se esqueceu. No dia 24 de Dezembro de 1942, depois do jantar os pais disseram-lhe que fosse à chaminé recolher a prenda do Pai Natal. Joãozinho, correu como louco ao encontro da oferta, pegou na caixa, abriu-a, soltou um grito de felicidade e logo calçou os sapatos. Ficou delirante. Abraçou e beijou efusivamente os pais. A família do Joãozinho viveu momentos de grande felicidade.
E não tardou que ele corresse ao encontro dos seus amiguinhos Fernandinho e Joaninha para lhes mostrar a prenda do Pai Natal. Uma hora depois, Joãozinho foi-se deitar e os pais o acomodaram e beijaram. Porém, estava-lhes reservada uma surpresa: Joãozinho, nessa madrugada dormiu com os sapatinhos colocados sob a almofada onde assentava a cabeça. Por largos anos aquela noite de Natal foi agradavelmente recordada pelo cidadão João da Conceição Nogueira e pelos seus pais Américo Nogueira e Joaquina da Conceição.
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