RECORDANDO UMA
CRÓNICA ESCRITA EM 2006
Domingo, 29 de Outubro, 2006
O ABERRANTE CONCURSO
PARA GÁUDIO DE MORCÕES…
Brasilino Godinho
Era uma vez uma senhora da televisão lisboeta. Maria Elisa, de sua graça. Um
dia aconteceu-lhe uma encantadora gracinha… partiu para Londres. Bem
relacionada no Ministério dos Negócios Estrangeiros (no qual, ao tempo,
pontificava o Dr. Martins da Cruz), logo após o desembarque nas margens do
Tamisa, fez-se conduzir à embaixada de Portugal. Uma vez chegada à sede da
representação diplomática portuguesa, instalaram-na confortavelmente, como
convinha a quem se dispunha a passar uma bela temporada de férias na capital
britânica. Para se entreter, não se julgar desocupada e nem se sentir inútil,
adornaram-na com o pomposo título e a tranquila função remunerada de adida
cultural. Lá se manteve durante três anos. Recatadamente, sem visibilidade.
Como se costuma dizer: muito senhora do seu nariz… Talvez fazendo trabalho de
formiguinha.
Pelo visto e entendido, atenta ao que se fazia na televisão inglesa. Tudo
indica com a preocupação de recolher ideias e modelos de programação para
depois serem utilizados na televisão caseira. O que não admira num meio
lisbonense que se vangloria de copiar o máximo das produções de alécm
fronteiras. E onde já se chegou ao cúmulo de elogiar e promover o plágio, desde
que praticado por gente decorada com um título académico. É o velho hábito de
muitos portugueses: Copiar! Copiar! Copiar! Um abuso que começa nos bancos da
escola e onde, “in illo tempore” tomou a designação de “copianço”. Coisa que
decorre de: faltarem as ideias; ser fatigante estudar, pensar e criar - o que,
também, requer conhecimentos que, às tantas, até faltam; exigir persistência;
ser uma tentação própria de individualidades predestinadas ao sacrifício e
risco de se assenhorearem dos labores alheios; ser recomendável a qualquer um
que, fanático da comodidade e adepto entusiasta da facilidade, se refugie na
cativante lei do menor esforço…
Acresce, que o acto de
copiar está na moda. Além de bastantes sujeitos se julgarem muito chiques
quando se põem de cócoras perante a estranja. O que dá azo a que ilustres
cavalheiros e famosas damas se revejam e festejem, respectivamente, como
vulgares macacos de pequenas e grandes imitações e atrevidas catatuas de
estimação.
Voltando a D. Elisa. Há
pouco, regressou à casa-mãe: a RTP - Rádio e Televisão de Portugal.
De imediato, se anunciou que
trazia na bagagem um formato de concurso da BBC. Anúncio que não é inteiramente
verdadeiro. Pois o dito já teria caído de pára-quedas na RTP. Na quarta-feira,
dia 25 de Outubro de 2006, no debate sobre o concurso dos “Grandes Portugueses”
ela, no calor da discussão, deixou escapar a seguinte dica: Há um ano foram
efectuadas entrevistas de rua, aos populares, no sentido de serem escolhidos os
nomes das personalidades incluídas na primeira lista das figuras elegíveis.
Tal “lapsus linguae” veio
reforçar a impressão de o concurso “Grandes Portugueses” estar na mira da RTP
há certo tempo e que vinha a ser preparado cuidadosamente. Daí, que a decisão
de não incluir os nomes de António Oliveira Salazar e Marcelo Caetano no rol
dos concorrentes terá sido propositada com vista a provocar a exagerada
controvérsia. E aproveitando o ambiente de contestação ao poder político que se
vive em Portugal, suscitar a intervenção do maior número de portugueses.
Perguntar-se-á: Qual o objectivo? - Dar projecção ao espectáculo televisivo.
Conjugar expedientes para alcançar o ambicionado êxito. Antevendo um final
arrebatador. Nele, não faltarão as loas à iniciativa e a festa de consagração
do grande triunfo da apresentadora: a insuperável D. Maria Elisa.
No entanto, o concurso
“Grandes portugueses” é o paradigma da indigência mental que grassa em
Portugal. A demonstração da vacuidade intelectual dos seus produtores e de
quantos se deixam arrastar por manifestações de superficialidade e de
estupidificação. Entreter as populações com programas ou espectáculos
inconsequentes e idiotas, ludibriando as pessoas sob o ignóbil disfarce de se
estar a promover eventos culturais e a divulgação da História de Portugal é uma
atitude deplorável, ofensiva da inteligência do cidadão, indecente e
irresponsável, da parte dos seus promotores e colaboradores mais chegados.
Também, neste caso, não
colhe a desculpa de idênticos concursos terem sido efectuados noutros países.
Necessariamente, não devemos ser “marias que vão com as outras”. Se existem
camadas das populações desses países que gostam de chafurdar na lama que disso
tirem bom proveito. Os portugueses não têm que lhes seguir os passos do
grotesco e do disparate. Sejamos lúcidos.
O ensino, o interesse e,
até, a veneração pela História de Portugal, o conhecimento e o estudo das
pessoas que se notabilizaram pelas suas qualidades, feitos e obras, devia
cultivar-se e desenvolver-se nas escolas e nos meios de comunicação social com
outros tipos de programas verdadeiramente aliciantes e superiormente
elaborados.
Depois, pôr figuras
marcantes da nação portuguesa, umas coevas, outras de tempos mais ou menos
remotos, em disputa num plano virtual e numa vertigem de fantasia e delírio de
imbecilidade, sem a elucidação decorrente do saber adquirido pela investigação
e pelos ensinamentos dos compêndios, pela leitura dos tratados e das obras
literárias e do conhecimento testemunhal das personalidades e dos factos ou dos
relatos sérios ao dispor da comunidade no caso dos distinguidos estarem vivos,
não faz nenhum sentido lógico e coerente; quaisquer que sejam as circunstâncias
que a facilitem, a condicionem, a limitem ou, mesmo, que a impeçam de forma
determinante.
E nesse preciso aspecto
ressalta uma situação de suprema importância. Portugal tem uma população de
milhões de analfabetos primários, funcionais e culturais. Sem dúvida, contam-se
por milhões os indivíduos que não praticam a leitura e a escrita ou não
percebem o que lêem ou ouvem. Se por aberração admitíssemos alguma utilidade a
este tipo de consulta popular o seu alcance, à partida, cairia por terra.
Inegavelmente, pelo impedimento resultante da grandeza desse quadro de crónico
analfabetismo. Não é pela via de ruidosas e deslumbrantes sessões de circo
mediático e pela prática de incríveis actos burlescos que elevamos o padrão
cultural da população portuguesa. Ou que a aliciamos para os bons hábitos da
leitura e da aquisição do saber.
Não é sério, nem
dignificante, contemplar a ignorância das pessoas e ignorar a extrema
dificuldade de cada qual se avaliar a si próprio, de julgar os outros e sopesar
as atribuições das qualidades, das obras, das carências e defeitos das
individualidades, de destrinçar os diferentes e complexos graus de importância
relativa entre as díspares áreas de intervenção em que se notabilizaram os
escolhidos.
Igualmente, neste concurso,
se evidencia um grande desrespeito pela memória dos mortos. Se nem em suas
vidas eles estiveram envolvidos à compita de apuramento de qual seria o mais
notável nas suas respectivas épocas, é procedimento inqualificável da televisão
estatal chamar à colação a memória dos seus nomes e envolvê-los num pleito
descabido e idiota. Sem dúvida, um abuso inadmissível. Uma desonestidade
intelectual! Digamos: Uma gratuita inutilidade. Um ultrajante atentado ao valor
e à dignidade de muitos portugueses notáveis.
Aliás, pretender fazer uma
classificação de grandes portugueses e entre eles designar o maior é
estultícia. Uma absoluta impossibilidade. Que advém das variáveis atinentes ao
objecto da inglória tarefa. E que são imensas. Todas elas de inatingível
concretização à escala humana. Em traços largos, sobressaem: a temporalidade, a
valorização e supremacia de áreas entre si mais ou menos correlacionantes, a
indefinição das matérias e dos critérios de avaliação, a destrinça das
qualidades, das aptidões, dos méritos das acções, dos defeitos e lacunas dos
escolhidos, das insuficiências relacionadas à incomensurável falta de
abrangência de saberes, de factores subjectivos, de predisposições mentais e
faculdades de alma dos eleitos e dos eleitores. Algo jamais ao alcance dos
agentes avaliadores, mesmo que se tratasse de um colégio de sábios. Igualmente,
admitindo - com interesseira vontade - que existam sábios...
A Rádio e Televisão de
Portugal se estivesse realmente empenhada em promover a divulgação da História
de Portugal e em elevar o nível cultural dos cidadãos produziria uma
consistente programação adequada ao propósito. Certamente que não teria acabado
com as emissões de peças de teatro e programas de divulgação do regular uso da
língua portuguesa e de tantos outros de natureza cultural. Também não relegaria
os poucos tempos de antena do campo da Cultura existentes para horários da
madrugada, de escassa audiência.
A RTP, estação de serviço
público, está mais interessada nos medíocres espectáculos, nas paródias do
circo político e nos índices das audiências.
Resumindo: O concurso
“Grandes Portugueses” é um desprezível passatempo. De inconcebível ocupação do
lazer. Uma brincadeira de mau gosto!... Para gáudio de morcões…
Mas, saliente-se: Existem
outras maneiras de, com elevação e sentido de servir o público, entreter os
telespectadores. Dessas, não cuida a RTP.
Post-scriptum – As considerações aqui expressas
relativamente ao concurso “Os grandes Portugueses” também se aplicam ao hipotético
concurso “Os pequenos (ou piores) portugueses”. Em qualquer deles assenta a
mácula de se ir longe de mais no desrespeito para com vivos e mortos.
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