BRASILINO GODINHO - TRANSCREVO,
COM A DEVIDA VÉNIA, DA Redacção Noticias Online UM TEXTO MUITO BEM FUNDAMENTADO
E MELHOR DOCUMENTADO; AO QUAL DISPENSO MINHA TOTAL CONCORDÂNCIA; VISTO QUE FOCA
ASPECTOS POR MIM ANOTADOS NOS MEUS “APONTAMENTOS”, NOMEADAMENTE A DESASTRADA E
INCRÍVEL POLÍTICA DO GOVERNO, MUITÍSSIMO CULPADA PELA EXTREMA GRAVIDADE
ATINGIDA PELO DISPLICENTE INÍCIO E ACENTUADA PROPAGAÇÃO DO SURTO DA COVID-19 EM
PORTUGAL.
Segue-se a transcrição:
Estado de emergência:
um álibi para os responsáveis
e um perigo para os cidadãos
António Garcia Pereira
Como já era de esperar o Presidente da República, ouvido o Conselho de
Estado e dada a autorização pela Assembleia da República (com a abstenção do
PCP e dos Verdes, e o voto favorável do BE), decretou o estado de emergência no
País por um período de 15 dias a começar às 00h00 de hoje, quinta-feira e a
terminar às 24h00 do próximo dia 2 de Abril, período esse que pode ainda,
sucessiva e infinitamente, ir sendo prorrogado por novos períodos de 15 dias.
A situação, indiscutivelmente, grave, existente em Portugal com o vírus
COVID-19, seguramente que aconselhava e até impunha a adopção de medidas drásticas
visando a restrição ou contenção do alastramento da doença (e que, aliás, já há
muito deveriam ter sido tomadas). Designadamente no que toca às entradas e
saídas do País, ao não funcionamento de grandes espaços de concentração de
pessoas (dos campos de futebol e pavilhões artísticos aos centros comerciais,
escolas e universidades), à afixação de cercas sanitárias e de segurança ou
mesmo à imposição de limitações e condicionamentos à circulação de pessoas,
outros seres vivos e/ou veículos, fosse no interior do País, fosse sobretudo
nas fronteiras.
Mas tudo isto poderia ser assegurado com os instrumentos previstos na Lei
de Bases da Protecção Civil[1], a qual precisamente prevê o
decretamento pelo Governo do estado de calamidade e de todas e de cada uma das
medidas acima enunciadas, sem ser necessário chegar à gravidade da suspensão
dos direitos, liberdades e garantias que a declaração do estado de emergência –
decretado pela primeira vez desde o 25/4/74 – necessariamente impõe.
Por isso, quem invoca que, estando nós perante uma verdadeira calamidade (o
que é verdade), logo, é preciso o estado de emergência, não está a colocar
correctamente a questão.
O decretamento do estado de emergência, isso sim, é que permite que se
proíba, por exemplo, o exercício do direito à greve. Medida esta que nada tem
que ver, como é óbvio, com o combate ao COVID-19, mas dá a mãos aos patrões, e
desde logo aos patrões da estiva do Porto de Lisboa, que não cumprem os acordos
que celebraram com os sindicatos, não pagam salários (em 2 meses, os
trabalhadores haviam recebido apenas 390€) e que na passada terça-feira se
deram mesmo ao luxo de fazer o legalmente proibido blackout,
proibindo aqueles estivadores que iam prestar os serviços mínimos de entrar no
Porto e aí assegurarem tais serviços.
Este é apenas um dos exemplos em que, a coberto do estado de emergência, se
liquida a favor dos patrões (e, neste caso, de uma poderosa multinacional, a
Yilport) um direito fundamental dos trabalhadores.
Mas o decretamento do estado de emergência serve também para que os
principais responsáveis políticos pela situação existente – que são os
governantes e não os cidadãos! – se possam eximir ao apuramento dessas suas
responsabilidades, e que são mesmo muito graves.
Na verdade, quando se começaram a conhecer os primeiros casos de COVID-19
na longínqua cidade chinesa de Wuhan, o que fizeram os governantes portugueses
(como, aliás, então, a generalidade dos governantes europeus)? Nada,
rigorosamente nada com a agravante de nós termos um Sistema Nacional de Saúde
fragilizado, desarticulado e totalmente impreparado para uma situação de crise
como esta!
E é mesmo muito curioso verificar como são agora os defensores das políticas
neo-liberais para a Saúde, concebendo esta como um serviço e não como um
direito fundamental dos cidadãos, que aparecem a clamar por medidas drásticas e
a reclamar e a apoiar o estado de emergência.
Quando chegamos a esta altura, ou até simplesmente ao início da crise, e se
constata que, por exemplo, no Hospital de Santa Maria só existem 8 camas
técnicas das quais 3 estão ocupadas e que em todo o País existirão apenas 308
quartos de pressão negativa que estão quase todos ocupados, forçoso é concluir
que há opções políticas que se pagam muito caro. E os Primeiros-Ministros e os
Ministros da Saúde de Portugal nos últimos 30 anos são os responsáveis pela
situação de enfraquecimento e desarticulação do SNS que hoje se vive.
Mas, com o estado de emergência e com a ideia de que é assim que lá vamos
resolver o problema do COVID-19, conseguem, afinal, escapulir-se pela porta
baixa como se nada tivessem a ver com a mesma situação…
Depois, quando o vírus chegou a outros pontos da China e começou já a
parecer noutros Países, designadamente da Europa, o que fizeram então os
governantes portugueses para verdadeiramente prevenir e conter quanto possível
a entrada do víris em Portugal? Nada, rigorosamente nada!
Já com o COVID-19 a galopar em países como a Itália, e logo depois a
Espanha, assistimos então, e só então, às primeiras orientações genéricas e às
primeiras medidas de controlo, designadamente nos aeroportos. Mas, ainda assim,
a lógica dominante foi a de, nos mesmos aeroportos, fazer apenas um controlo de
temperatura aos passageiros unicamente se estes viessem de zonas já conhecidas
de casos confirmados. E ainda assim, houve voos em que esse controlo não
existiu com a extraordinária justificação de que, dado o pouco número de casos
detectados por essa via, não compensava estar a proceder a tal controlo.
Quando, finalmente, o vírus entra em força em Portugal e começa, como é sua
característica, a crescer exponencialmente, aquilo que se impunha era um
ataque, imediato e eficaz , na contenção da doença, com o acudir em força a
todas as situações, com todos os meios humanos e todo o material, individual e
colectivo, indispensável a esse contra-ataque, com a definição de todos os
procedimentos adequados (de organização dos serviços, de circulação de
informação e de pessoas, de metodologias a seguir em caso de suspeita, etc.,
etc.) e a informação, real e atempada, aos cidadãos, obtendo a sua compreensão
e o seu apoio para as medidas que iriam ter de ser tomadas.
Porém, o que se passou neste campo foi, desde logo, a ausência de
capacidade de resposta do SNS, com falta de quartos, de camas, de ventiladores,
de equipamentos individuais de protecção e também de profissionais de saúde,
tais como médicos e enfermeiros, que estão, aliás, a trabalhar heroicamente e
muito para além dos limites do razoável.
Assistimos também a determinações quase sempre atrasadas, insuficientes e
até contraditórias das Direcção-Geral de Saúde (DGS). Por exemplo, enquanto os
profissionais de saúde passaram a ter de seguir regras e procedimentos de prevenção
mais ou menos apertados, os trabalhadores das empresas que prestam serviços nos
Hospitais em regime de outsourcing – que deveriam, também,
observar aquelas regras e respeitar, sendo esse o caso, o período de quarentena
–, continuaram, porém, a apresentar-se ao serviço e a trabalhar nas suas
condições habituais, propiciando assim todas as hipóteses de contágio.
O SNS24, mesmo após a demissão do seu dirigente máximo (como se fosse ele o
responsável pela situação de incapacidade de resposta daquele serviço
decorrente dos sucessivos cortes orçamentais na Saúde), continuou e continua a
levar 3, 4, 5 dias a atender os cidadãos que a ele recorrem. E a linha de apoio
médico praticamente apenas tem servido para os médicos dele integrantes
funcionarem como uma espécie de tampão administrativo aos pedidos de realização
do teste ao COVID-19, formulados pelos seus Colegas dos Centros de Saúde e dos
Hospitais.
Finalmente, para comunicar com o público, o Governo tratou de escolher duas
pessoas: por um lado, a Directora-Geral de Saúde, Dra. Graça Freitas, pessoa
tecnicamente competente, mas extremamente lenta nas decisões e incapaz no campo
da comunicação com o público; por outro, a própria Ministra da Saúde, em quem
mais do que justificadamente ninguém acredita, sobretudo quando se põe a falar
de números. Isto, porque foi demitida do cargo de Presidente da Administração
Central do Sistema de Saúde (ACSS) pelo anterior Ministro Adalberto Campos
Fernandes por um relatório de auditoria do Tribunal de Contas ter posto a nu a
completa manipulação, leia-se: falsificação, dos dados relativos às listas e
aos tempos de espera dos doentes do SNS. É esta pessoa que tem o desplante de
vir agora elogiar muito os grupos profissionais, em particular os enfermeiros e
os médicos, que ela tanto atacou e até insultou há pouco tempo atrás. O que
poderia então o Governo esperar da capacidade de ligação de um personagem como
este com os cidadãos em geral que não fosse o desinteresse ou até o desprezo
por parte dos mesmos cidadãos?
O que fazer então?
Os cálculos matemáticos da epidemiologia apontam para que, no espaço de uma
semana, tenhamos qualquer coisa como 40 mil infectados pelo COVID-19. Ora, do
que já se conhece dos outros Países, 80% (32.000) não representarão problemas,
15% (6.000) terão de ser tratados, mas não constituirão fonte de particular
preocupação e 5% (2.000) constituirão um problema de saúde, e bem grave.
Há, pois, que preparar tudo para tratar bem, e de forma emergente, estes
nossos concidadãos. Porém, neste momento, os ventiladores existentes no SNS são
1.142 e cerca de 250 nos privados, não chegando, pois, aos 1.500. E as vagas em
unidades especializadas (como as de cuidados intensivos) são cerca de 940.
Precisamente por não se ter tratado destas questões há 2, 3 ou mesmo mais
semanas atrás, estão a verificar-se no presente momento enormes dificuldades na
respectiva aquisição, que têm de ser vencidas.
E, sobretudo, e conforme recomenda a OMS e aconselham os médicos da cidade
de Wuhan (que venceu o vírus e acabou de encerrar o último hospital de combate
ao COVID-19), trata-se agora de testar, testar, testar sempre, sem
constrangimentos administrativos ou financeiros. O que significa que é um
perfeito e crasso erro negar ou, pelo menos, suscitar toda a sorte de entraves
aos doentes dos médicos dos Centros de Saúde e dos Hospitais que entendem que
tais pacientes deviam fazer o teste. A sua realização devia ser, não entravada,
mas antes facilitada em toda a linha.
Finalmente, é absolutamente essencial constranger ao máximo a propagação do
vírus. Devíamos tê-lo começado a fazer há várias semanas atrás, mas, ainda que
com esse grande atraso, temos agora de tudo fazer para travar o mais possível a
sua progressão. E todas as medidas de constrição de contactos, cautelas
preventivas das movimentações e concentrações de pessoas e até mesmo o fecho de
fronteiras, sobretudo aéreas, mas também terrestres, devem ser vistas como
necessárias e ser adoptadas a 100%. Mas, para tal, repito, não era precisa a
declaração do estado de emergência que, suspendendo os direitos, liberdades e
garantais fundamentais dos cidadãos – incluindo o basilar direito de
resistência a ordens ilegais, consagrado no art.º 21º da Constituição – tem por
pressuposto uma situação não apenas de calamidade, como de incapacidade de as
instituições democráticas e os principais serviços públicos funcionarem.
Ora, estamos nós numa situação em que, por virtude da calamidade do
COVID-19, não haja nem água, nem electricidade, nem gás, nem recolha de lixo,
em que se sucedam os assaltos e as pilhagens, em que não há telefones, fixos os
móveis, que funcionem e em que a situação que se vive é próxima do completo
caos? É óbvio que não! E por isso, mesmo face a uma situação de calamidade, não
se justifica que aquilo que tenha sido decretado seja o estado de emergência, e
não, por exemplo, o estado de calamidade a nível nacional.
Mas a verdade é que, para além de tudo isto, se abriu também um
perigosíssimo precedente para que, no futuro, quem tenha o poder nas mãos,
perante uma vaga de protestos, de manifestações e de greves contra as políticas
sociais, económicas e laborais de um dado Governo, e com argumentações muito
semelhantes às de agora, se promova o decretamento do estado de emergência e
assim se consigam suspender todos os direitos, liberdades e garantias dos
cidadãos por um período inicial de 15 dias que, através da sua sucessiva
prorrogação, se pode transformar num tempo indeterminado.
Foi a isto, verdadeiramente, que os cidadãos justamente preocupados com o
COVID-19 quiseram abrir a porta?
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