SE O MEU CASO SERVE DE EXEMPLO
PARA AS NOVAS GERAÇÕES DECERTO
QUE INTERESSA DÁ-LO A CONHECER
TANTO EM PORTUGAL, COMO NO BRASIL, NA
COMUNIDADE LUSÓFONA E NOUTROS PAÍSES
(Junto uma reportagem de 04-10-2017).
(Junto uma reportagem de 04-10-2017).
NA UNIVERSIDADE AOS 77 ANOS,
DOUTORADO AOS 85
Reportagem
de Sónia Morais Santos
Tem um
olhar vivo e perspicaz, de quem está sempre pronto a aprender qualquer coisa
que a vida ainda tenha para lhe ensinar. Brasilino Godinho faz este mês 86 anos
e concluiu em Julho o doutoramento em Estudos Culturais, contrariando o batido
provérbio que garante que "burro velho não aprende línguas". Talvez
por não ser burro nem por não se considerar suficientemente velho, o que é
certo é que cumpriu um sonho, deu uma lição a quem arruma prematuramente as
botas e, de caminho, arrumou com ditados tolos.
"Na
minha adolescência tomei logo o propósito de entrar na universidade, mas os
meus pais não dispunham de recursos financeiros", explica Brasilino,
com um português tão antigo quanto correcto. Nessa altura, desconsolado
por ser o dinheiro a cortar-lhe as pernas, procurou o avô paterno, "um
industrial com recursos que podia perfeitamente custear os estudos".
Brasilino disse ao que ia. "E ele, depois de uma pausa que pareceu uma
eternidade, disse que era muito caro." Que podia comprar-lhe uma bicicleta
para ele ir trabalhar lá para a fábrica. O neto agradeceu mas recusou.
"Andei muitos anos a censurar-lhe o procedimento. Mas hoje até lhe estou
agradecido. Sabe, às vezes há males que vêm por bem. Se tivesse ido para
Lisboa fazer Engenharia, no Técnico, não teria adquirido a
experiência de vida que tenho. Seria protegido pelo meu avô. E assim posso
dizer que tudo o que construí a mim devo."
Brasilino
nasceu em Tomar e sempre gostou da escola. Lia muito. Com os seus 16
anos já tinha lido Kant, Platão, Bertrand Russell, entre outros. Como não pôde
fazer a universidade, fez o Curso Industrial de Serralharia Mecânica, na
escola Jacome Ratton, em Tomar. "Detestei o curso. Frequentar as aulas
práticas para mim era como ter um martelo a bater-me na cabeça. No primeiro trabalho
da aula de oficina deram-me um quadrado de chapa com um palmo de lado. O
objectivo era pôr todos os ângulos a 90º. Fui limando, limando, até ficar com
um quadradinho minúsculo e, mesmo assim, ainda não estava bem. Passei a
detestar trabalhos manuais. Mais tarde a minha mulher brincava comigo:
'nem para pregar um prego tu serves!' E tinha razão." De qualquer
modo, o curso foi muito exigente. Tão exigente e profundo que passados 30 anos
Brasilino ainda conseguia deduzir as fórmulas da Cinemática, capítulo
da Mecânica (disciplina da Física), ministrada no referido curso.
Quando
terminou o curso industrial, Brasilino esteve dois anos e meio a trabalhar na
secção de engenharia da Câmara Municipal de Tomar sem receber um tostão.
"Foi muito importante. Queria aprofundar a prática e agarrei-me a isso.
Sem dúvida que foi um grande investimento de natureza profissional, de
experiência de vida e de apreensão das práticas político-administrativas do
poder autárquico. Tornei-me um desenhador de construção civil razoável. Quando
abriu o concurso para a Direcção Geral de Serviços de Urbanização, para
desenhador de 3ª classe, candidatei-me. Eram 50 e tal concorrentes e,
surpreendentemente, fiquei em 6º lugar. Chamaram-me para exercer a função na
Direcção de Urbanização dos Açores e lá fui eu, em Maio de 1954, para Ponta
Delgada."
Em Ponta
Delgada, tentou de novo voltar aos estudos. Comprou livros, procurou uma
explicadora e quando estava tudo bem encaminhado, surgiu a oportunidade
de colaborar na elaboração de vários projectos de estradas.
"Aconteceu sempre, na minha vida. Sempre que encetava os passos
direccionados para a universidade surgiam outras coisas que se punham à frente
dos estudos". Entre elas, Luísa Maria Albernaz Tapia, que conheceu nos
Açores e com quem casou e teve dois filhos (duas novas alegrias que se
interpuseram à escola). Os filhos, de resto, tiveram a oportunidade que
ele não teve. Curiosamente, formaram-se ambos em Engenharia Civil, na
Universidade do Porto e com todos os encargos financeiros suportados pelo pai.
Depois de
quase três anos em Ponta Delgada, voltou para o continente, mais
concretamente para a Direcção de Urbanização de Leiria; tendo mais tarde, em
Fevereiro de 1963, mudado para Aveiro onde, nos Serviços Técnicos da Junta
Distrital de Aveiro, acabou a fazer uma longa carreira como topógrafo-chefe,
apesar de muitas contrariedades profissionais, que o desgastaram mas nunca o
vergaram.
Quando,
em 2008, a mulher faleceu aos 74 anos, Brasilino Godinho ficou profundamente
abalado. Afinal, tinham vivido 51 anos juntos. Não é fácil suportar uma perda
tão grande. Brasilino permitiu-se fazer o luto e, um dia, respirou fundo e
sentiu que tinha chegado o momento de seguir em frente. E seguir em frente
significava, agora que os filhos já tinham a sua vida e que a mulher partira,
voltar aos estudos oficiais, tanto tempo adiados. Então, com 77 anos, concorreu
à Universidade de Aveiro, ao abrigo do processo de Bolonha, no sentido de
frequentar o curso de Línguas, Literaturas e Culturas. Teve 17 valores na prova
de admissão. "A primeira aula? Não há palavras para a descrever. Foi uma
emoção adiada 60 anos, o que a tornou inexprimível. No final da aula, solicitei
à professora o uso da palavra. E pedi aos meus colegas para não me darem
tratamento especial. Queria que soubessem que não me achava nem mais nem menos
do que qualquer um deles."
Ainda
assim, não foi praxado, nem andou nas noitadas como quase todos. Por outro
lado, estudou muito. Sobretudo porque começou o ano atrasado (teve de esperar
pelo despacho que o autorizava a iniciar o curso ainda nesse ano lectivo) e
depois de 3 aulas de Latim teve logo um teste. "Quando veio a nota - 7
valores - pensei: 'Brasilino, para quem nunca teve um sete, começas mesmo
mal.' Mas, também reflecti de que nem tivera tempo
de estudo suficiente para aprofundar matéria de tanta exigência. No final do
período tive 16."
Brasilino
Godinho terminou o curso a 14 de Dezembro de 2012, com a média de 15 valores.
Logo em Janeiro foi pedir para se inscrever no Doutoramento. Disseram-lhe que
tinha de fazer o Mestrado primeiro. "Expliquei que atendendo à
provecta idade de 81 anos seria de admitir não haver espaço de tempo de vida
para cursar Mestrado e Doutoramento. Além de que não queria perder o ritmo de
trabalho que tinha conquistado. Foi feito um requerimento dirigido ao
presidente do Conselho Científico da Universidade de Aveiro a solicitar
permissão para frequentar o Doutoramento que, dois meses depois, chegou
aprovado pelos 17 membros do conselho, por unanimidade.”
E foi
assim que, aos 85 anos, Brasilino se tornou doutor. No dia 5 de Julho
defendeu, durante duas horas, a tese com quase 500 páginas, "Antero de
Quental: um patriotismo prospectivo no porvir de Portugal". Porquê,
Quental? "Porque foi um poeta de muito valor, tão brilhante como Camões e
um pensador extraordinário. Tão extraordinário que, no final do acto doutoral,
apresentei uma proposta para que a Universidade dos Açores fosse designada por
Universidade Antero de Quental. Entretanto já recebi a resposta do reitor da dita
universidade a agradecer a proposta mas afirmando que não estava no
horizonte alterar a designação de Universidade dos Açores".
Agora,
com quase 86 anos, uma vida inteira de experiência, dois livros de poesia e um
volume de ensaio publicados, uma licenciatura (com 15 valores) e um
doutoramento (aprovado por unanimidade do júri), Brasilino Godinho
pretende arranjar emprego: "Se estive 8 anos a fazer dois cursos
universitários (licenciatura e doutoramento) e manifestei capacidade para os
frequentar e concluir com boas avaliações, com certeza que estou habilitado a
trabalhar! Ou como assessor numa instituição oficial ou particular relacionada
com Urbanismo e Construção Civil, ou como professor de Cultura Portuguesa ou
Cultura Espanhola. Se não arranjar emprego, vou continuar estudos na área
das Humanidades, dedicar-me mais à escrita e publicar dois livros que tenho em
carteira”.
Um
exemplo de perseverança e vontade de viver, sem dúvida. E se é verdade que
esvaziou o sentido ao provérbio que diz que "burro velho não aprende
línguas", não é menos verdade que deu todo o sentido a um outro:
"Parar é morrer". É que Brasilino está mais vivo que nunca.
Fotografias: Filipe Andrade
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