Não
sou Charlie! Mas...
Brasilino
Godinho
Sou
cidadão português com nome próprio. Não tenho disposição, nem
me cumpre obrigação de adoptar nome francês e de vir a público
exibir cartaz com a legenda “Je suis Charlie”, num tempo de
efervescência mediática decorrente do atentado de Paris. E como se
tal expediente de “Maria que vai com as outras” fosse comovente
manifestação de solidariedade com a França e de respeitosa
homenagem póstuma às vítimas do horrendo crime.
Escrito
isto, importa fazer breves considerações sobre o drama que é o
assassínio de qualquer pessoa.
Matar
um ser humano é sempre um acto inadmissível. Cidadãos de boa
formação moral e no pleno domínio das suas faculdades de alma não
o fazem e estão na primeira linha dos que condenam tais
procedimentos.
O
que se passou foi um acto bárbaro e, sem remissão, condenável!
Generalizou-se uma onda emotiva que se estendeu pelo mundo tido como
civilizado.
Por
que sobressaía o facto de representar um atentado contra a Liberdade
e o exercício, sem peias, da expressão do pensamento, os órgãos
de comunicação social sentiram-se atingidos e deram-lhe grande e
continuado relevo ao longo das 24 horas que se lhe seguiram – o que
foi decisivo factor de mobilização geral.
Mas
não se tratou só de um acto isolado contra um jornal francês. Foi,
sobretudo, uma acção criminosa contra as vidas das pessoas que
estiveram na mira dos assaltantes.
É
precisamente neste plano que, julgo, nos devemos colocar. Para que
não haja a ideia de a consternação geral ser uma embaraçosa e
inconveniente manifestação de hipocrisia, que deixa bastantes
indivíduos representados numa má imagem fotográfica. Pior, ainda:
facilmente aproveitada por gente irresponsável que se compraz em
ludibriar o próximo e jogar com os sentimentos das pessoas.
Repete-se,
dando ênfase à afirmação: as perdas de vidas em circunstâncias
dramáticas e criminosas são sempre deploráveis. Também
condenáveis: seja pelos tribunais judiciais, seja pelos chamados
tribunais das opiniões públicas dos países evoluídos.
Assim
considerando, na hora actual há que apelar à serenidade de espírito
e exercitar sensatez e razoabilidade no julgamento do caso de Paris e
situá-lo em correlação com todos os casos de mortes de cidadãos
que ocorrem diariamente por todo o mundo vítimas de morticínios;
sejam eles por armas de fogo, sejam por outros meios que levam
inexoravelmente ao passamento de gente indefesa e desprotegida face
às arbitrariedades dos poderes constituídos; nomeadamente aqui
perto, na África, na Europa e, também, em Portugal.
E
já que citámos Portugal lançamos a interrogação: As mortes de
doentes durante as esperas para serem atendidas nas urgências dos
hospitais, anunciadas nos últimos dias e os falecimentos de idosos e
carenciados atribuídos às faltas de meios de subsistência causadas
pelas indecentes medidas de austeridade do governo, não serão
ocorrências sinistras que deveriam merecer a atenção das multidões
emocionadas? Tais mortes não são já em avantajado número em todo
o território nacional?
Como
é possível condenar o que se passou em Paris e “esquecer”
aquilo de sinistro que acontece diariamente em Portugal? Como não
mobilizar a atenção dos serviços de segurança pública e
judiciais portugueses para tão tenebrosas ocorrências nesta
desgraçada parcela europeia? Como, em Portugal, não exigir
responsabilidades aos governantes directamente colocados no olho do
furacão governamental? Responsabilidades que deveriam ter cabimento
em sede de julgamento criminal. Aliás, seguindo o exemplo da
Islândia onde os tribunais condenaram a anos de prisão o chefe do
governo e ministros por manifestas actuações que estiveram na
origem do colapso económico e financeiro daquele país.
Sintetizando:
importa haver coerência e seriedade. Isto é: não se admite
condenar os assaltantes do jornal humorístico francês, Charlie
Hebdo e ignorar ou absolver os procedimentos relativos aos casos aqui
apontados Afinal, uns e outros convergem nos resultados de mortes de
pessoas desprotegidas e (ou) carentes de meios materiais.
Também
não esquecer os crimes das degolações praticadas pelos membros da
organização “Estado Islâmico” que não provocaram
manifestações de repúdio em que estivessem envolvidas grandes
multidões.
Ontem
em Paris, na Praça da República concentrou-se uma multidão
manifestando a sua consternação pelas violentas mortes de 12
pessoas.
Em
finais de 1991 ou princípios de 1992, os órgãos de comunicação
social mobilizaram milhares de portugueses em manifestações de
repúdio e condenação do massacre do Cemitério de Santa Cruz, em
Dili, capital de Timor Leste.
No
tempo actual, neste país, os jornais, as televisões e os
portugueses não protestam contra a onda de inúmeras mortes de
cidadãos vítimas do persistente uso e abuso das subtis armas
assassinas: cortes de salários e pensões; fome; míngua de
alimentos; falta de medicamentos e de cuidados médicos; contínuos
aumentos dos custos de vida (energia, combustíveis, alimentação,
transportes, impostos directos e indirectos, cuidados de saúde,
etc.).
Entretanto,
muitos portugueses, sem esperança, vão aguardando a morte. Alguns,
regalados, estão gozando - obscenamente - a vida.
Imagine-se!
Até presidente Cavaco; por acaso, tristemente sobrevivendo com uma
pensão que nem lhe chega para cobrir as despesas correntes...
Presume-se que, no Palácio de Belém, vai suspirando ansioso pelo
termo do mandato presidencial.
Igualmente
de assinalar que a maioria da população está mergulhada numa
“austera, apagada e vil tristeza” - como diria Luís de Camões.
Ficam
duas imperiosas e pertinentes interrogações:
-
Será que o explorado povo português, muito sofrido e angustiado,
não desperta rapidamente e em força para a dolorosa realidade que o
cerca e o subjuga a poderes discricionários?
-
Para quando veremos em Lisboa, no Terreiro do Paço e nas capitais
dos distritos, grandes multidões protestando e a chorar as mortes
dos cidadãos portugueses; as quais, vão acontecendo por obra e
desgraça das políticas governamentais?
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