Recebemos através
da Internet o texto do filósofo José Gil, que transcrevemos:
"O roubo do presente"
José Gil
Há pelo menos uma década e meia
está a ser planeada e experimentada quer a nível do nosso país, quer na Europa
e no mundo uma nova ditadura - não tem armas, não tem aparência de assalto, não
tem bombas, mas tem terror e opressão e domesticação social e se deixarmos
andar, é também um golpe de estado e terá um só partido e um só governo -
ditadura psicológica.
.
"Nunca uma situação se
desenhou assim para o povo português: não ter futuro, não ter perspectivas de
vida social, cultural, económica, e não ter passado porque nem as competências
nem a experiência adquiridas contam já para construir uma vida. Se perdemos o
tempo da formação e o da esperança foi porque fomos desapossados do nosso
presente. Temos apenas, em nós e diante de nós, um buraco negro.
.
O «empobrecimento» significa não
ter aonde construir um fio de vida, porque se nos tirou o solo do presente que
sustenta a existência. O passado de nada serve e o futuro entupiu. O poder
destrói o presente individual e coletivo de duas maneiras: sobrecarregando o
sujeito de trabalho, de tarefas inadiáveis, preenchendo totalmente o tempo
diário com obrigações laborais; ou retirando-lhe todo o trabalho, a capacidade
de iniciativa, a possibilidade de investir, empreender, criar.
.
Esmagando-o com horários de
trabalho sobre-humanos ou reduzindo a zero o seu trabalho. O Governo utiliza as
duas maneiras com a sua política de austeridade obsessiva: por exemplo, mata os
professores com horas suplementares, imperativos burocráticos excessivos e
incessantes: stress, depressões, patologias, border-line, enchem os gabinetes
dos psiquiatras que os acolhem. É o massacre dos professores. Em exemplo
contrário, com os aumentos de impostos, do desemprego, das falências, a
política do Governo rouba o presente de trabalho (e de vida) aos portugueses
(sobretudo jovens)
.
O presente não é uma dimensão
abstracta do tempo, mas o que permite a consistência do movimento no fluir da
vida. O que permite o encontro e a intensificação das forças vivas do passado e
do futuro - para que possam irradiar no presente em múltiplas direcções.
Tiraram-nos os meios desse encontro, desapossaram-nos do que torna possível a
afirmação da nossa presença no presente do espaço público. Actualmente, as
pessoas escondem-se, exilam-se, desaparecem enquanto seres sociais.
.
O empobrecimento sistemático da
sociedade está a produzir uma estranha atomização da população: não é já o
«cada um por si», porque nada existe no horizonte do «por si». A sociabilidade
esboroa-se aceleradamente, as famílias dispersam-se, fecham-se em si, e para o
português o «outro» deixou de povoar os seus sonhos - porque a textura de que
são feitos os sonhos está a esfarrapar-se. Não há tempo (real e mental) para o
convivio. A solidariedade efectiva não chega para retecer o laço social
perdido.
.
O Governo não só está a
desmantelar o Estado social, como está a destruir a sociedade civil. Um
fenómeno, propriamente terrível, está a formar-se: enquanto o buraco negro do
presente engole vidas e se quebram os laços que nos ligam às coisas e aos
seres, estes continuam lá, os prédios, os carros, as instituições, a sociedade.
Apenas as correntes de vida que a eles nos uniam se romperam. Não pertenço já a
esse mundo que permanece, mas sem uma parte de mim.
.
O português foi expulso do seu
próprio espaço continuando, paradoxalmente, a ocupá-lo. Como um zombie: deixei
de ter substância, vida, estou no limite das minhas forças - em vias de me
transformar num ser espectral. Sou dois: o que cumpre as ordens automaticamente
e o que busca ainda uma réstia de vida para os seus, para os filhos, para si.
.
Sem presente, os portugueses estão
a tornar-se os fantasmas de si mesmos, à procura de reaver a pura vida
biológica ameaçada, de que se ausentou toda a dimensão espiritual. É a maior
humilhação, a fantomatização em massa do povo português.
.
Este Governo transforma-nos em
espantalhos, humilha-nos, paralisa-nos, desapropria-nos do nosso poder de
acção. É este que devemos, antes de tudo, recuperar, se queremos
conquistar a nossa potência própria e o nosso país."
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