NESTE DIA,
há 6 anos
NÃO SOU CHARLIE! MAS...
Sou cidadão português com nome próprio. Não tenho disposição, nem me cumpre obrigação de adoptar nome francês e de vir a público exibir cartaz com a legenda “Je suis Charlie”, num tempo de efervescência mediática decorrente do atentado de Paris. E como se tal expediente de “Maria que vai com as outras” fosse comovente manifestação de solidariedade com a França e de respeitosa homenagem póstuma às vítimas do horrendo crime.
Escrito isto, importa fazer breves considerações sobre o drama que é o assassínio de qualquer pessoa.
Matar um ser humano é sempre um acto inadmissível. Cidadãos de boa formação moral e no pleno domínio das suas faculdades de alma não o fazem e estão na primeira linha dos que condenam tais procedimentos.
O que se passou foi um acto bárbaro e, sem remissão, condenável! Generalizou-se uma onda emotiva que se estendeu pelo mundo tido como civilizado.
Por que sobressaía o facto de representar um atentado contra a Liberdade e o exercício, sem peias, da expressão do pensamento, os órgãos de comunicação social sentiram-se atingidos e deram-lhe grande e continuado relevo ao longo das 24 horas que se lhe seguiram – o que foi decisivo factor de mobilização geral.
Mas não se tratou só de um acto isolado contra um jornal francês. Foi, sobretudo, uma acção criminosa contra as vidas das pessoas que estiveram na mira dos assaltantes.
É precisamente neste plano que, julgo, nos devemos colocar. Para que não haja a ideia de a consternação geral ser uma embaraçosa e inconveniente manifestação de hipocrisia, que deixa bastantes indivíduos representados numa má imagem fotográfica. Pior, ainda: facilmente aproveitada por gente irresponsável que se compraz em ludibriar o próximo e jogar com os sentimentos das pessoas.
Repete-se, dando ênfase à afirmação: as perdas de vidas em circunstâncias dramáticas e criminosas são sempre deploráveis. Também condenáveis: seja pelos tribunais judiciais, seja pelos chamados tribunais das opiniões públicas dos países evoluídos.
Assim considerando, na hora actual há que apelar à serenidade de espírito e exercitar sensatez e razoabilidade no julgamento do caso de Paris e situá-lo em correlação com todos os casos de mortes de cidadãos que ocorrem diariamente por todo o mundo vítimas de morticínios; sejam eles por armas de fogo, sejam por outros meios que levam inexoravelmente ao passamento de gente indefesa e desprotegida face às arbitrariedades dos poderes constituídos; nomeadamente aqui perto, na África, na Europa e, também, em Portugal.
E já que citámos Portugal lançamos a interrogação: As mortes de doentes durante as esperas para serem atendidas nas urgências dos hospitais, anunciadas nos últimos dias e os falecimentos de idosos e carenciados atribuídos às faltas de meios de subsistência causadas pelas indecentes medidas de austeridade do governo, não serão ocorrências sinistras que deveriam merecer a atenção das multidões emocionadas? Tais mortes não são já em avantajado número em todo o território nacional?
Como é possível condenar o que se passou em Paris e “esquecer” aquilo de sinistro que acontece diariamente em Portugal? Como não mobilizar a atenção dos serviços de segurança pública e judiciais portugueses para tão tenebrosas ocorrências nesta desgraçada parcela europeia? Como, em Portugal, não exigir responsabilidades aos governantes directamente colocados no olho do furacão governamental? Responsabilidades que deveriam ter cabimento em sede de julgamento criminal. Aliás, seguindo o exemplo da Islândia onde os tribunais condenaram a anos de prisão o chefe do governo e ministros por manifestas actuações que estiveram na origem do colapso económico e financeiro daquele país.
Sintetizando: importa haver coerência e seriedade. Isto é: não se admite condenar os assaltantes do jornal humorístico francês, Charlie Hebdo e ignorar ou absolver os procedimentos relativos aos casos aqui apontados Afinal, uns e outros convergem nos resultados de mortes de pessoas desprotegidas e (ou) carentes de meios materiais.
Também não esquecer os crimes das degolações praticadas pelos membros da organização “Estado Islâmico” que não provocaram manifestações de repúdio em que estivessem envolvidas grandes multidões.
Ontem em Paris, na Praça da República concentrou-se uma multidão manifestando a sua consternação pelas violentas mortes de 12 pessoas.
Em finais de 1991 ou princípios de 1992, os órgãos de comunicação social mobilizaram milhares de portugueses em manifestações de repúdio e condenação do massacre do Cemitério de Santa Cruz, em Dili, capital de Timor Leste.
No tempo actual, neste país, os jornais, as televisões e os portugueses não protestam contra a onda de inúmeras mortes de cidadãos vítimas do persistente uso e abuso das subtis armas assassinas: cortes de salários e pensões; fome; míngua de alimentos; falta de medicamentos e de cuidados médicos; contínuos aumentos dos custos de vida (energia, combustíveis, alimentação, transportes, impostos directos e indirectos, cuidados de saúde, etc.).
Entretanto, muitos portugueses, sem esperança, vão aguardando a morte. Alguns, regalados, estão gozando - obscenamente - a vida.
Imagine-se! Até presidente Cavaco; por acaso, tristemente sobrevivendo com uma pensão que nem lhe chega para cobrir as despesas correntes... Presume-se que, no Palácio de Belém, vai suspirando ansioso pelo termo do mandato presidencial.
Igualmente de assinalar que a maioria da população está mergulhada numa “austera, apagada e vil tristeza” - como diria Luís de Camões.
Ficam duas imperiosas e pertinentes interrogações:
- Será que o explorado povo português, muito sofrido e angustiado, não desperta rapidamente e em força para a dolorosa realidade que o cerca e o subjuga a poderes discricionários?
- Para quando veremos em Lisboa, no Terreiro do Paço e nas capitais dos distritos, grandes multidões protestando e a chorar as mortes dos cidadãos portugueses; as quais, vão acontecendo por obra e desgraça das políticas governamentais?
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