Leitor,
Pare!
Leia!
Pondere!
Decida-se!

SE ACREDITA QUE A INTELIGÊNCIA

SE FIXOU TODINHA EM LISBOA

NAO ENTRE NESTE ESPAÇO...

Motivo: A "QUINTA LUSITANA "

ESTÁ SITUADA NA PROVÍNCIA...

QUEM TE AVISA, TEU AMIGO É...

e cordialmente se subscreve,
Brasilino Godinho

domingo, dezembro 29, 2019


A MINHA CELEBRAÇÃO DE NATAL:
IR AO ENCONTRO DE EU MESMO

Brasilino Godinho
28/Dezembro/2019
TOMO III
COM EMOÇÃO E DELEITE
PERCORRENDO OS ESCANINHOS DA INFÂNCIA

Ainda agradavelmente ocupado em desfrutar o tempo, o clima, os modos e as circunstâncias em que me senti envolvido nessa época inicial da minha existência como ser animal consciente de si mesmo, minha atenção se concentrou de-repente, na pessoa do Sr. Delgado que rondava os setenta anos e foi a primeira pessoa amiga que, aos três/quatro aos de idade, tive fora do círculo familiar. Um grande amigo que, de vez em quando, me convidava para jantar na sua casa em companhia das duas lindas senhoras, suas filhas (o leitor já reparou que, por regra pessoal, anoto sempre apreciações sobre a beleza das criaturas do belo sexo que vou citando? Uma tendência irreprimível porque sinto deslumbramento face ao eterno feminino, que me é inata…)
Um passo mais dado em frente, eis-me passando férias na residência dos meus avós paternos, Manuel Godinho e Custódia Neta, na Pedreira; acolhedora e alcantilada aldeia, sobranceira ao Rio Nabão, situada a 5 km. da templária cidade nabantina. As férias do Natal eram sempre passadas na Pedreira, em casa dos referidos avós.
Na noite de 24 de Dezembro a avó Custódia Neta e as tias Emília Godinho e Maria Godinho estavam ocupadas na cozinha, junto à grande lareira longitudinal, a fazerem bilharacos e coscorões que enchiam dois grandes alguidares vidrados, de barro. De modo que estes fritos consumidos aos pequenos-almoços duravam até ao dia de Reis. Por falar nesta duração da doçaria, ocorre-me citar uma outra referente a cozedura que me deliciava: a dos caseiros pães de trigo – que gostosos! E que eram consumidos desde a segunda-feira até à sexta-feira. Somente aos sábados e domingos se comia pão da padaria.
A já um pouco entradota na idade, prima Custódia Clara, mulher de José Felicíssimo, que funcionava como caseiro agrícola, vinha no domingo à noite (20h:30’) a casa dos meus avós peneirar a farinha de trigo. Na segunda-feira, pelas 8 horas, iniciava a amassadura num grande alguidar que, atingido o ponto necessário para a massa bem levedar, era coberto com grandes cobertores. Seguia-se o aquecimento, a lenha, do forno e por volta das 11h. era executada a tarefa de tender os pães e com uma longa pá de madeira coloca-los um por um no lugar da fornalha, precedendo a retirada dos resíduos, brasas e cinzas do seu interior.

Por me ter vindo à lembrança e a título de curiosidade faço uma revelação: naquele tempo de meninice conheci na Pedreira um carneiro que pertencia à senhora Elisa Tarraco: a qual, tinha uma grande estimação por mim.
O carneiro da minha admiradora era muito mauzinho: antipático e mal-intencionado, de médio porte, mas com grandes cornos, tinha o hábito de investir contra as pessoas. Seu desavergonhado comportamento antissocial deu para entender que me tomou de ponta; pois que por ter vezes me tentou agredir com violência. Duas vezes investiu de frente e à terceira vez, traiçoeiramente, pelas costas. Delas me esquivei com movimentos rápidos que, se fossem executados hoje, diria serem faenas a merecerem olés de quem as presenciasse. Dessa vez, o desaforo foi castigado com vergastada dada pela dona que, na altura, estava junto de mim. Teria o malvado ciúmes do merecimento que me era concedido pela dona?
De tais ocorrências resultou que deixei de ver com bons olhos os carneiros do continente português.
Com algum apreço e subtil desconfiança me cruzei, nos aos de 1954, 1955 e 1956, com os carneiros de Ponta Delgada, atrelados a carrocinhas e que são atracções turísticas. Talvez algo civilizados por força dos efeitos entorpecentes do conhecido “capacete” cinzento sobre o solo da Ilha de S. Miguel.    

Porém, em contraste, foi gratificante naquela época de infantil vivência, ter tido a oportunidade e a satisfação de conhecer o burro Felizardo. Dele e da sua agitada convivência diária com o tratador Felicíssimo faço relato que titulo: FELIZARDO VERSUS FELICÍSSIMO.
      
FELIZARDO VERUS FELICÍSSIMO
A RELAÇÃO SURPREENDENTE

Como nos antecedentes mencionei, no meu tempo de criança e adolescente, frequentando a escola de Ensino Primário, primeiro, e depois a Escola Industrial e Comercial Jácome Ratton, na cidade de Tomar, costumava passar férias na aldeia Pedreira, em casa dos meus avós paternos. Para ocupar o tempo tinha por hábito acompanhar as tarefas agrícolas dirigidas pelo caseiro Felicíssimo, que também tratava do burro a que pusera o nome de Felizardo, com nítida intenção pejorativa.
De assinalar que era empolgante assistir às peripécias do relacionamento atribulado entre o caseiro Felicíssimo e o burro Felizardo; embora me desagradasse presenciar as ocasionais e desabridas agressões físicas de que era vítima o Felizardo; o qual, infelizmente, estava longe de o ser, sempre que estava por perto o Felicíssimo.
A manhã começava com a chegada de Felicíssimo ao curral de Felizardo e a saudação nada amistosa ao animal em tom agressivo: Seu burro! Seu tratante! Seu malcriado! Seu manhoso! Já te vou fazer a cama… E trato-te da saúde! E batendo-lhe com chicote: Toca a andar! Meche-te! Grande patife! E desta maneira violenta o Felizardo era escorraçado do curral. Porém, o Felizardo, mantendo serenidade e parecendo não ligar patavina aos impropérios desabridos de Felicíssimo, saía pachorrentamente – o que irritava sobremaneira o caseiro da casa. 
Entretanto Felizardo, imobilizado junto à parede exterior, aguardava que Felicíssimo fizesse a limpeza do curral e na manjedoura colocasse a sua ração diária. Finda esta tarefa matinal de Felicíssimo, este acompanhava Felizardo nas várias deslocações para as hortas e para a fonte onde era recolhida a água para os consumos domésticos. Nos trajectos efectuados pelo duo, o Felizardo ia suportando estoicamente as agressões verbais e físicas do Felicíssimo; o qual sempre manifestou um ódio de estimação pela criatura Felizardo.
Não obstante a pacatez de Felizardo, às vezes a relação azedava-se e Felizardo, com enorme coragem, em lugar de avançar recuava teimosamente. Felicíssimo, de cabeça perdida, não parava de berrar com ele e de tentar agredi-lo violentamente. Aí dava-se a refrega: e Felizardo começava a escoicear vigorosamente. O caldo entornara e parecendo magia, Felicíssimo, num ápice, sustinha a fúria, a modos de parecer um cordeiro manso. Então, Felizardo, senhor da situação, seguia em frente, ligeiro e Felicíssimo tinha de estugar (o passo) para poder acompanhar a rápida marcha de Felizardo.
Como nos antecedentes parágrafos relato, o relacionamento entre Felicíssimo e Felizardo era conflituoso. Assisti a cenas impressionantes de brigas entre os dois em que Felicíssimo berrava e tentava bater-lhe e Felizardo dava urros, mostrava os dentes, irritado, e atirava coices, a que Felicíssimo se esgueirava; por vezes, com sorte. Nunca foi atingido pelo escoicear de Felizardo. Certamente, porque, quando a coisa descambava para o torto, Felicíssimo aquietava-se bruscamente.
Desses tempos e de tudo que testemunhei do relacionamento entre Felicíssimo e Felizardo colhi a impressão/crença de que Felizardo era mais inteligente e estratega que o caseiro Felicíssimo Quando havia refrega, Felizardo saía sempre vencedor e mostrava-se satisfeito, abanando as orelhas, abrindo a boca em zurro baixinho e compassado; também associando um esgar – entendido como escárnio e expressão de triunfalismo.
Aprendi bastante com Felizardo; nomeadamente, no que concerne a resistência passiva e capacidade e sentido de momento certo para enfrentar dificuldades e situações adversas, como aconteciam na relação do carrasco/demónio que era Felicíssimo com o pacífico e bem-intencionado ser vivente, Felizardo, de sua amarga graça. Frequentemente, trocávamos olhares cúmplices. Às vezes, cavalgava-o nas idas a Tomar, aos sábados, com grande gozo, acompanhando a Custódia Clara que ia às compras semanais necessárias para o sustento do lar da família Godinho, residente na Pedreira.
Felizardo era um ser fora de série. Pacato, inteligente, corajoso, determinado a enfrentar as adversidades e as maldades de gente burra – ressalvando o imprescindível respeito para com a memória do Felizardo.
Tinha grande admiração e estima, pelo Felizardo. Dele conservo agradável recordação.
Faço minhas as palavras de um presumido crente: que lá, Felizardo, no altíssimo lugar etéreo onde terá subido pelos seus inegáveis méritos de boa criatura animal, viva em sereno sossego e paz com os seus semelhantes e dessemelhantes…

Burro Felizardo