O PAPEL DA MULHER NA SOCIEDADE
Com a devida
vénia transcrevo do CORREIO DO RIBATEJO
a entrevista
da Dr.ª Idália Serrão. O que faço pela sua inegável relevância e por ter
suscitado interesse da parte dos meus leitores.
"Assinalou-se
na sexta-feira, 8 de Março, o Dia Internacional da Mulher, data que, muito mais
do que comemorativa das lutas do movimento feminista, tem o propósito de
incentivar a reflexão sobre o papel da mulher na sociedade, fomentando a luta
pelo fim da opressão e das desigualdades consubstanciadas pelo género; é o
momento de se discutir e procurar soluções sobretudo para a violência contra a
mulher, a qual se manifesta de forma simbólica e esclarecida – principalmente
através da violência física. A este propósito, o Correio do Ribatejo
entrevistou Idália Serrão, a primeira mulher, em 178 anos, a integrar o
Conselho de Administração da Associação Mutualista Montepio. Licenciada em
Ciências Sociais – Serviço Social, Idália Serrão iniciou a carreira política em
Almoster, foi vereadora da Câmara de Santarém, secretária de Estado da
Reabilitação, entre 2005 e 2011, e deputada. Tomou posse como administradora da
Associação Mutualista a 3 de Janeiro de 2019.
Desde que a
Igualdade de direitos e deveres, na vida política e civil, entre homens e
mulheres foi consolidada, qual foi, na sua opinião, o aspecto que mais avançou
e que pode ser destacado como uma vitória? Diria, em primeiro lugar, que a igualdade de direitos,
na vida política e civil, entre homens e mulheres, ainda não foi consolidada.
Tem vindo, gradualmente mas num ritmo lento, a ser construída e tem ainda um
longo caminho pela frente até a sua consolidação. Falamos de pessoas que têm
percorrido os mesmos caminhos mas que se deparam com obstáculos diferentes.
Mulheres e homens, com as mesmas idades, as mesmas competências, a mesma
vontade de participar, são confrontados com regras e oportunidades diferentes
de participação. Ainda hoje todos sentimos o peso dos juízos morais que se
fazem sobre as mulheres (felizmente, menos expressivos, mas existentes) e que
nunca se farão sobre os homens: se estas vão ocupando lugares de maior
responsabilidade, efectivamente, por mérito, ou porque há pressão social para
que haja partilha; se não deveriam dar mais atenção à casa e à família, em
detrimento de uma carreira política ou profissional; ou então, absurdos como os
que temos lido e ouvido, plasmados em sentenças judiciais a propósito de casos
de violência sobre as mulheres, em que se apoucam e rebaixam as mulheres, se
desvaloriza a sua condição de reiteradas vítimas de maus tratos e se abre um
caminho aos agressores que culmina, infelizmente, em tragédia para as mulheres,
para os filhos e para as famílias que também são vítimas. Tudo isto com base em
juízos de valor e na assunção da condição de inferioridade das mulheres. Há
exigências, observações e comentários que são feitos às mulheres e sobre as
mulheres que não são, efetivamente, feitos aos homens ou sobre os homens. Por
isso não podemos dizer que é um processo consolidado, mas lento e em
construção.
Quem é a
mulher hoje? Quais são suas maiores conquistas e seus maiores desafios? A mulher, hoje, é um cidadão com
direitos, condição que nem sempre lhe foi ou é reconhecida. Direitos humanos.
Que se foi afirmando na sociedade. Através da educação, das competências e da
participação. Completamos este ano quarenta e cinco anos da revolução de Abril.
Se nos focarmos na realidade portuguesa e fizermos uma leitura, mesmo breve, do
percurso que as mulheres fizeram ao longo destes quarenta e cinco anos, no
acesso ao ensino e na obtenção de graus académicos, constatamos que a realidade
que tínhamos no início dos anos setenta não tem qualquer comparação com a que
temos actualmente. Passámos do acesso a uma escolaridade básica e à pouco
expressiva frequência de ciclos de escolaridade mais avançados, para uma
posição de liderança das mulheres na frequência e conclusão das licenciaturas,
mestrados e doutoramentos. Hoje as mulheres estão na dianteira da aquisição de
competências e do conhecimento. Em face desta realidade, faz sentido que as
mulheres sejam permanente questionadas sobre mérito? Sobre merecimento? Afirmo,
com a veemência de todos os dias, que não. E que é tempo de todos fazerem um
esforço para arrumar os preconceitos que têm sobre as mulheres.
Acha que,
efectivamente, as mulheres têm hoje as mesmas oportunidades que os homens?, Acho que não. Por uma razão, para
mim, muito óbvia. Enquanto os homens não estiverem disponíveis para partilhar
oportunidades com as mulheres, a relação será desigual. É aqui que entra a
importância das leis indutoras da partilha de oportunidades. As quotas, como
usamos chamar-lhes. Considero que são mecanismos transitórios, fundamentais,
para acelerar a mudança. A este propósito é muito interessante olharmos para o
número de mulheres que tinham assento no Parlamento ou nos órgãos autárquicos
antes da lei das quotas, para a discussão “apaixonada” que os portugueses
fizeram sobre a sua implementação, e para representatividade actual das
mulheres nestes órgãos, em número superior ao estipulado. Se assim não fosse,
ainda hoje andaríamos, muito provavelmente, a ouvir que não há mulheres para
integrar listas porque não há mulheres que queiram participar. Não corresponde
à realidade.
Alguma vez
sentiu que, por ser mulher, algumas oportunidades lhe estavam vedadas? Sim. Já o senti. Já ouvi, por várias
vezes, comentários menos próprios, mais preconceituosos, alguns jocosos, outros
inoportunos e despropositados. Quem me conhece sabe que nunca ficam sem
resposta. Os meus pais nasceram ambos em Almoster, onde passei parte da
infância e onde regressei, em permanência, há cerca de oito anos. Fiz em
Almoster parte da escolaridade inicial, a restante foi feita em Lisboa. Da
minha mãe herdei a necessidade de estar sempre actualizada e de questionar as
notícias na forma como queriam que as pudéssemos entender; num tempo de canais
únicos de rádio e televisão e de poucos jornais, muitas vezes ouvi a minha mãe
questionar a tendência da opinião que estava a ser veiculada. Como trabalhava
de costura, em casa, creio que ouvia quase todos os serviços noticiosos desde
que se levantava, até se deitar. Do meu pai, ferrador de ofício, que
intercalava com os turnos na Carris, além do espírito critico, também herdei o
gosto pela leitura. Guardo uma vasta “biblioteca” que foi sendo adquirida com a
pouca folga financeira que existia lá em casa. Dizia-me o meu pai que só
teríamos capacidade de separar a verdade da mentira se tivéssemos mundo. E que
ler, para quem não tinha podido estudar ou viajar, como era o caso dos meus
pais, era a única forma de poder adquiri-lo. Guardo dos meus pais o sentido
crítico e o hábito de questionar o que me rodeia. Aos 14 anos fui aprender
música, aos 16 estava a dar aulas de educação musical na escola onde era aluna.
Fui violinista profissional numa orquestra que foi extinta. Passei directamente
da estante da orquestra para a secção de créditos documentários de exportação
na sede de uma instituição bancária. A minha mãe partiu com uma idade muito
próxima daquela que tenho hoje. Quando me apercebi que teria poucas semanas de
vida dirigi-me aos recursos humanos do banco e pedi uma licença sem vencimento.
Responderam-me que deveria deixar a minha mãe num lar porque não seria possível
responderem à minha solicitação. Nessa mesma hora pedi que me fizessem as
contas e despedi-me. Fiz o que tinha a fazer. Nunca me arrependerei. Estive
depois ligada à produção musical e televisiva. Dirigi e gravei milhares de
horas de versões portuguesas de bandas sonoras e documentários. Adoeci
gravemente. Ao fim de dezoito meses, renasci. Quis retribuir. Ter intervenção
na comunidade. Fui ter com o José Niza, que conhecia de outras andanças e
ofereci-me para integrar a lista do partido socialista à junta de freguesia de
Almoster. Em lugar não elegível. Não podia abandonar a minha actividade
profissional. Um quarto lugar na lista transformou-se, por vicissitudes várias,
que os protagonistas bem conhecem, na presidência da junta. Nos vinte e um anos
que se seguiram tive o privilégio de ser eleita para diferentes órgãos
autárquicos de freguesia, municipais e intermunicipais; servi o meu país, ao
mais alto nível, no Governo de Portugal, na Assembleia da República, onde
integrei a Mesa como Secretária, e nas missões internacionais em que participei
como observadora de processos eleitorais. Pelo caminho licenciei-me e sou
doutoranda em política social. Estou a abraçar um novo desafio na Associação
Mutualista Montepio. Gosto muito de trabalhar, de trabalhar em equipa, de
começar o dia muito cedo e de aprender. Estudo durante a noite e durmo pouco
mas sinto-me bem. Sou mãe de dois filhos extraordinários, o mais novo, atleta
de alta competição que todos os dias defende a baliza de um clube de andebol da
liga francesa, e de uma filha, sobre a qual li, na última semana, numa
publicação de referência de Espanha, que é uma das melhores profissionais de
marketing do país vizinho. Os meus filhos são o meu maior bem e tenho um imenso
orgulho nos seus percursos, construídos com muito esforço e por mérito próprio.
Tudo isto
para vos dizer que a vida me foi dando oportunidades e que sempre que me senti
injustiçada nunca deixei de o dizer. E de o transmitir aos meus filhos tal como
o recebi dos meus pais. Nunca me resignei nem nunca me acomodei. Passados cinquenta
e quatro anos, o balanço é positivo. Sou uma mulher feliz e realizada que pede,
para si e para os seus, familiares e amigos, saúde e que Deus continue a
iluminar-nos o caminho.
“Como é que
encara o desafio de ser a primeira mulher na administração da Associação
Mutualista Montepio, em 178 anos? Como um imenso desafio mas também como uma
oportunidade e uma enorme responsabilidade. Assumi funções em áreas onde tenho,
ao longo dos anos, desenvolvido a minha actividade e aprofundado o
conhecimento. Respostas sociais para os mais velhos, como as residências
assistidas; e para os mais novos, como as residências para estudantes; a que se
juntam o desenvolvimento de produtos mutualistas na área da saúde e do
bem-estar e ainda competências mais estratégicas. Tenho o privilégio de
trabalhar com mulheres e homens de grande qualidade técnica e humana, que todos
os dias dão o seu melhor na Associação Mutualista, nas participadas e nas
instrumentais do grupo. Pessoas que vestem a camisola do Montepio, da sua
sustentabilidade, do seu bom nome, da sua modernização, da coesão de todo o
grupo, do respeito pelos associados e da garantia que os seus interesses são
salvaguardados. Muitas vezes, contra muitas barreiras e muitas contrariedades.
Mas nunca baixam a guarda. O Montepio integra muitas mulheres em áreas
estratégicas. Sinto-me, porque gosto muito de trabalhar em equipa, apenas mais
uma. Estou certa que com o passar dos anos as mulheres estarão ainda mais
presentes na Associação Mutualista e em todo o grupo.
A luta pelos
direitos das mulheres é uma causa defendida colectivamente por movimentos
feministas e outros grupos. Mas como é que uma mulher, individualmente, no seu
dia-a-dia, pode fazer valer seus direitos? Afirmando-se com determinação na difusão desses
direitos; promovendo oportunidades para mulheres e homens quando está em
lugares de decisão; indignando-se contra injustiças que violem a igualdade de
oportunidades entre homens e mulheres, credos diferentes, cores de pele ou
etnias, condições motoras, sensoriais, intelectuais que não estão padronizadas;
rejeitando a discriminação.
Qual é o
maior desafio que enfrentamos, enquanto sociedade, para alcançar a igualdade de
género, e quais são, na sua opinião, as principais estratégias, para atingir
esse objectivo? As estratégias
têm vindo a fazer um caminho que todos gostaríamos de ver percorrido com menos
lentidão. Mas para que a igualdade seja uma realidade é necessário que cada um
de nós entenda a importância do seu papel enquanto agente de mudança. Para esse
efeito é determinante que todos, sem exceção, interiorizemos que mulheres e
homens são iguais em direitos. Como já todos entendemos que este processo não é
linear, considero fundamental a existência de instrumentos transitórios, como
as quotas de género, que tragam mais mulheres para o exercício de algumas
actividades historicamente desempenhadas por homens, para as quais as mulheres
estão disponíveis e têm competências, mas a que não conseguem aceder; que não
se culpem, de forma despudorada, as mulheres, quando são vítimas da violência
dos homens; e que exista igualdade salarial para o desempenho das mesmas
tarefas por mulheres e por homens, o que ainda não é uma realidade. A educação
das gerações mais novas, em casa e na escola, para a igualdade de direitos entre
homens e mulheres e para a partilha de responsabilidades e tarefas é,
igualmente, um processo determinante para a mudança.
Qual o papel
do homem nesta mudança? Não há mudança sem homens e sem mulheres. Por conseguinte, os homens nem se
podem colocar à margem destes processos, nem podem ser deixados de fora.
O que tem
que mudar, para que este Dia não precise de ser celebrado? Homens e mulheres têm de ser,
efectivamente, iguais em direitos na família e na sociedade. Perante os
progressos alcançados nunca deveremos deixar de celebrar o dia 8 de Março,
honrando a memória das cerca de 130 operárias têxteis de uma fábrica em Nova
Iorque que, no início do século XIX, reclamavam uma jornada de 10 horas de
trabalho, foram encerradas na fábrica e morrem queimadas, assim como de todas
as mulheres que têm dado a sua vida pela afirmação dos seus direitos.
Qual é a
personalidade – ou personalidades nacionais – que, na sua opinião, merece um
lugar de relevo na história na luta pela emancipação da mulher? Tenho uma grande admiração pelas
portuguesas, de todas as profissões e de todas as ideologias, que no tempo da
ditadura e já em democracia deram muito de si pela emancipação da mulher. No
entanto, quero deixar esse merecido lugar para todas as mulheres, de todas as
idades, que morreram às mãos dos seus agressores, geralmente familiares
próximos, nas suas casas e na presença dos filhos. Mulheres, vítimas de
violência, submetidas por alguns agentes de Justiça a intoleráveis preconceitos
e humilhações com base em juízos de valor, e deliberadamente expostas, depois
de julgadas, ao ódio dos agressores. É a estas mulheres que manifesto o meu
respeito, a minha solidariedade e a minha voz, não me calando.”
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