Quinta-feira, 26.11.15
Não lhes perdoo! - Francisco Seixas da Costa
http://duas-ou-tres.blogspot.pt, 26 de Novembro de 2015
Acaba
hoje aquela que constitui a mais penosa experiência política a que me
foi dado assistir na minha vida adulta em democracia. Salvaguardadas as
exceções que sempre existem, quero dizer que nunca me senti tão distante
de uma governação como daquela a que este país sofreu desde 2011.
Não
duvido que alguns dos governantes que hoje transitam para o passado
tentaram fazer o seu melhor ao longo destes cerca de quatro anos e meio.
Em alguns deles detetei mesmo competência técnica
e profissional, fidelidade a uma linha de orientação que consideraram
ser a melhor para o país que lhes calhou governarem. Mas há coisas que,
na globalidade do governo a que pertenceram, nunca lhes perdoarei.
Desde
logo, a mentira, a descarada mentira com que conquistaram os votos
crédulos dos portugueses em 2011, para, poucas semanas depois, virem a
pôr em prática uma governação em que viriam a fazer precisamente o
contrário daquilo que haviam prometido. As palavras fortes existem para
serem usadas e a isso chama-se desonestidade política.
Depois,
a insensibilidade social. Assistimos no governo que agora se vai,
sempre com cobertura ao nível mais elevado, a uma obscena política de
agravamento das clivagens sociais, destruidora do tecido de
solidariedade que faz parte da nossa matriz como país, como que
insultando e tratando com desprezo as pessoas idosas e mais frágeis,
desenvolvendo uma doutrina que teve o seu expoente na frase de um
anormal que jocosamente falou, sem reação de ninguém com
responsabilidade, de "peste grisalha". Vimos surgir, escudado na
cumplicidade objetiva do primeiro-ministro, um discurso "jeuniste" que
chegou mesmo a procurar filosofar sobre a legitimidade da quebra da
solidariedade inter-geracional.
Um
dia, ouvi da boca de um dos "golden boys" desta governação, a
enormidade de assumir que considerava "legítimo que os reformados e
pensionistas fossem os mais sacrificados nos cortes, pela fatia que isso
representava nas despesas do Estado mas, igualmente, pela circunstância
da sua capacidade reivindicativa de reação ser muito menor dos que os
trabalhadores no ativo", o que suscitava menos problemas políticos na
execução das medidas. Essa personagem foi ao ponto de sugerir a
necessidade de medidas que estimulassem, presumo que de forma não
constrangente, o regresso dos velhos reformados e pensionistas,
residentes nas grandes cidades, "à provincia de onde tinham saído", onde
uma vida mais barata poderia ser mais compatível com a redução dos seus
meios de subsistência.
Fui
testemunha de atos de desprezo por interesses económicos
geoestratégicos do país, pela assunção, por mera opção ideológica, por
sectarismo político nunca antes visto, de um desmantelar do papel do
Estado na economia, que chegou a limites quase criminosos. Assisti a um
governante, que hoje sai do poder feito ministro, dizer um dia, com ar
orgulhosamente convicto, perante investidores estrangeiros, que "depois
deste processo de privatizações, o Estado não ficará na sua posse com
nada que dê lucro".
Ouvi
da boca de outro alto responsável, a propósito do processo de
privatizações, que "o encaixe de capital está longe de ser a nossa
principal preocupação. O que queremos mostrar com a aceleração desse
processo, bem como com o fim das "golden shares" e pela anulação de
todos os mecanismos de intervenção e controlo do Estado na economia, é
que Portugal passa a ser a sociedade mais liberal da Europa, onde o
investimento encontra um terreno sem o menor obstáculo, com a menor
regulação possível, ao nível dos países mais "business-friendly" do
mundo".
Assisti
a isto e a muito mais. Fui testemunha do desprezo profundo com que a
nossa Administração Públuca foi tratada, pela fabricação artificial da
clivagem público-privado, fruto da acaparação da máquina do Estado por
um grupo organizado que verdadeiramente o odiava, que o tentou destruir,
que arruinou serviços públicos, procurando que o cidadão-utente, ao
corporizar o seu mal-estar na entidade Estado, acabasse por se sentir
solidário com as políticas que aviltavam a máquina pública.
No
Ministério dos Negócios Estrangeiros, assisti a uma operação de
desmantelamento criterioso das estruturas que serviam os cidadãos
expatriados e garantiam a capacidade mínima para dar a Portugal meios
para sustentar a sua projeção e a possibilidade da máquina diplomática e
consular defender os interesses nacionais na ordem externa. Assisti ao
encerramento cego de estruturas consulares e diplomáticas (e à alegre
reversão de algumas destas medidas, quando conveio), à retirada de meios
financeiros e humanos um pouco por todo o lado, à delapidação de
património adquirido com esforço pelo país durante décadas, cuja
alienação se fez com uma irresponsável leveza de decisão.
Nunca
lhes perdoarei o que fizeram a este país ao longo dos últimos anos. E,
muito em especial, não esquecerei que a atuação dessas pessoas, à frente
de um Estado que tinham por jurado inimigo e no seio do qual foram uma
assumida "quinta coluna", conseguiu criar em mim, pela primeira vez em
mais de quatro décadas de dedicação ao serviço público - em que cultivei
um orgulho de ser servidor do Estado, que aprendi com os exemplos do
meu avô e do meu pai -, um sentimento de desgostosa dessolidarização com
o Estado que tristemente lhes coube titular durante este triste
quadriénio.
Por
essa razão, neste dia em que, com imensa alegria, os vejo partir, não
podia calar este meu sentimento profundo. Há dúvidas quanto ao futuro
que aí vem? Pode haver, mas todas as dúvidas serão sempre mais
promissoras que este passado recente que nos fizeram atravessar. Fosse
eu católico e dir-lhes-ia: vão com deus. Como não sou, deixo-lhe apenas o
meu silêncio.
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