FELICIANO VERSUS FELIZARDO
A RELAÇÃO SURPREENDENTE
Brasilino Godinho
No meu tempo de criança e adolescente,
frequentando a escola de Ensino Primário, primeiro, e depois a Escola
Industrial e Comercial Jácome Ratton, na cidade de Tomar, costumava passar
férias na aldeia Pedreira, em casa dos meus avós paternos. Para ocupar o tempo
tinha por hábito acompanhar as tarefas agrícolas dirigidas pelo caseiro
Feliciano, que também tratava do burro a que pusera o nome de Felizardo, com
nítida intenção pejorativa.
De assinalar que era empolgante
assistir às peripécias do relacionamento atribulado entre o caseiro Feliciano e
o burro Felizardo; embora me desagradasse presenciar as ocasionais e desabridas
agressões físicas de que era vítima o Felizardo; o qual, infelizmente, estava
longe de o ser, sempre que estava por perto o Feliciano.
A manhã começava com a chegada de
Feliciano ao curral de Felizardo e a saudação nada amistosa ao animal em tom
agressivo: Seu burro! Seu tratante! Seu malcriado! Seu manhoso! Já te vou fazer
a cama… E trato-te da saúde! E batendo-lhe com chicote: Toca a andar! Meche-te!
Grande patife! E desta maneira violenta o Felizardo era escorraçado do curral.
Porém, o Felizardo, mantendo serenidade e parecendo não ligar patavina aos
impropérios desabridos de Feliciano, saía pachorrentamente – o que irritava
sobremaneira o caseiro da casa.
Entretanto Felizardo, imobilizado
junto à parede exterior, aguardava que Feliciano fizesse a limpeza do curral e na
manjedoura colocasse a sua ração diária. Finda esta tarefa matinal de
Feliciano, este acompanhava Felizardo nas várias deslocações para as hortas e
para a fonte onde era recolhida a água para os consumos domésticos. Nos
trajectos efectuados pelo duo, o Felizardo ia suportando estoicamente as
agressões verbais e físicas do Feliciano; o qual sempre manifestou um ódio de
estimação pela criatura Felizardo.
Não obstante a pacatez de
Felizardo, às vezes a relação azedava-se e Felizardo, com enorme coragem, em
lugar de avançar recuava teimosamente. Feliciano, de cabeça perdida, não parava
de berrar com ele e de tentar agredi-lo violentamente. Aí dava-se a refrega: e
Felizardo começava a escoicear vigorosamente. O caldo entornara e parecendo
magia, Feliciano, num ápice, sustinha a fúria, a modos de parecer um cordeiro
manso. Então, Felizardo, senhor da situação, seguia em frente, ligeiro e
Feliciano tinha de estugar (o passo) para poder acompanhar a rápida marcha de
Felizardo.
Como nos antecedentes parágrafos
relato, o relacionamento entre Feliciano e Felizardo era conflituoso. Assisti a
cenas impressionantes de brigas entre os dois em que Feliciano berrava e
tentava bater-lhe e Felizardo dava urros, mostrava os dentes, irritado, e
atirava coices, a que Feliciano se esgueirava; por vezes, com sorte. Nunca foi
atingido pelo escoicear de Felizardo. Certamente, porque, quando a coisa
descambava para o torto, Feliciano aquietava-se bruscamente.
Desses tempos e de tudo que
testemunhei do relacionamento entre Feliciano e Felizardo colhi a
impressão/crença de que Felizardo era mais inteligente e estratega que o
caseiro Feliciano. Quando havia refrega, Felizardo saía sempre vencedor e
mostrava-se satisfeito, abanando as orelhas, abrindo a boca em zurro baixinho e
compassado; também associando um esgar – entendido como escárnio e expressão de
triunfalismo.
Aprendi bastante com Felizardo;
nomeadamente, no que concerne a resistência passiva e capacidade e sentido de
momento certo para enfrentar dificuldades e situações adversas, como aconteciam
na relação do carrasco/demónio que era Feliciano, com o pacífico e bem-intencionado
ser vivente, Felizardo, de sua amarga graça. Frequentemente, trocávamos olhares
cúmplices. Às vezes, cavalgava-o nas idas a Tomar, aos sábados, com grande gozo.
Tinha grande admiração, estima, pelo Felizardo. Dele conservo agradável
memória.
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