29 de Agosto de 2012
ESPANHA:
" O CANO DE UMA PISTOLA PELO CU"
O texto
que incendiou Espanha
Um texto de Juan José Millás, publicado no El País que vale a pena ler.
24/08/2012 | 00:01 | Dinheiro Vivo
"O cano de uma pistola
pelo cu" e "As relações impossíveis: Economia real- Economia
financeira", eram os dois títulos do texto que Juan José Millás publicava
na secção de cultura do El Pais.
Em poucos dias tornou-se
viral: 19000 shares no Facebook, 15 mil tweets, um país indignado.
Hoje, o Dinheiro Vivo publica
em exclusivo - e pela primeira vez em português - o texto sobre o capitalismo
que incendiou Espanha
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Leia amanhã no suplemento do Dinheiro Vivo (publicado com o Diário de Notícias e Jornal de Notícias), a entrevista com Juan José Millás.
Leia amanhã no suplemento do Dinheiro Vivo (publicado com o Diário de Notícias e Jornal de Notícias), a entrevista com Juan José Millás.
O cano de uma pistola pelo cu
Se percebemos bem - e não é
fácil, porque somos um bocado tontos -, a economia financeira é a economia real
do senhor feudal sobre o servo, do amo sobre o escravo, da metrópole sobre a
colónia, do capitalista manchesteriano sobre o trabalhador explorado.
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A economia financeira é o
inimigo da classe da economia real, com a qual brinca como um porco ocidental
com corpo de criança num bordel asiático.
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Esse porco filho da puta pode,
por exemplo, fazer com que a tua produção de trigo se valorize ou desvalorize
dois anos antes de sequer ser semeada.
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Na verdade, pode comprar-te,
sem que tu saibas da operação, uma colheita inexistente e vendê-la a um terceiro,
que a venderá a um quarto e este a um quinto, e pode conseguir, de acordo com
os seus interesses, que durante esse processo delirante o preço desse trigo
quimérico dispare ou se afunde sem que tu ganhes mais caso suba, apesar de te
deixar na merda se descer.
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Se o preço baixar demasiado,
talvez não te compense semear, mas ficarás endividado sem ter o que comer ou
beber para o resto da tua vida e podes até ser preso ou condenado à forca por
isso, dependendo da região geográfica em que estejas - e não há nenhuma segura.
É disso que trata a economia financeira.
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Para exemplificar, estamos a
falar da colheita de um indivíduo, mas o que o porco filho da puta compra
geralmente é um país inteiro e ao preço da chuva, um país com todos os cidadãos
dentro, digamos que com gente real que se levanta realmente às seis da manhã e
se deita à meia-noite.
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Um país que, da perspetiva do
terrorista financeiro, não é mais do que um jogo de tabuleiro no qual um
conjunto de bonecos Playmobil andam de um lado para o outro como se movem os
peões no Jogo da Glória.
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A primeira operação do
terrorista financeiro sobre a sua vítima é a do terrorista convencional: o tiro
na nuca. Ou seja, retira-lhe todo o caráter de pessoa, coisifica-a.
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Uma vez convertida em coisa,
pouco importa se tem filhos ou pais, se acordou com febre, se está a
divorciar-se ou se não dormiu porque está a preparar-se para uma competição.
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Nada disso conta para a
economia financeira ou para o terrorista económico que acaba de pôr o dedo
sobre o mapa, sobre um país - este, por acaso -, e diz "compro" ou
"vendo" com a impunidade com que se joga Monopólio e se compra ou
vende propriedades imobiliárias a fingir.
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Quando o terrorista financeiro
compra ou vende, converte em irreal o trabalho genuíno dos milhares ou milhões
de pessoas que antes de irem trabalhar deixaram na creche pública - onde estas
ainda existem - os filhos, também eles produto de consumo desse exército de
cabrões protegidos pelos governos de meio mundo mas sobreprotegidos, desde
logo, por essa coisa a que chamamos Europa ou União Europeia ou, mais
simplesmente, Alemanha, para cujos cofres estão a ser desviados neste preciso
momento, enquanto lê estas linhas, milhares de milhões de euros que estavam nos
nossos cofres.
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E não são desviados num
movimento racional, justo ou legítimo, são-no num movimento especulativo
promovido por Merkel com a cumplicidade de todos os governos da chamada zona
euro.
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Tu e eu, com a nossa febre, os nossos
filhos sem creche ou sem trabalho, o nosso pai doente e sem ajudas, com os
nossos sofrimentos morais ou as nossas alegrias sentimentais, tu e eu já fomos
coisificados por Draghi, por Lagarde, por Merkel, já não temos as qualidades
humanas que nos tornam dignos da empatia dos nossos semelhantes.
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Somos simples mercadoria que
pode ser expulsa do lar de idosos, do hospital, da escola pública, tornámo-nos
algo desprezível, como esse pobre tipo a quem o terrorista, por antonomásia,
está prestes a dar um tiro na nuca em nome de Deus ou da pátria.
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A ti e a mim, estão a pôr nos
carris do comboio uma bomba diária chamada prémio de risco, por exemplo, ou
juros a sete anos, em nome da economia financeira.
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Avançamos com ruturas diárias,
massacres diários, e há autores materiais desses atentados e responsáveis
intelectuais dessas ações terroristas que passam impunes entre outras razões
porque os terroristas vão a eleições e até ganham, e porque há atrás deles
importantes grupos mediáticos que legitimam os movimentos especulativos de que
somos vítimas.
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A economia financeira, se
começamos a perceber, significa que quem te comprou aquela colheita inexistente
era um cabrão com os documentos certos. Terias tu liberdade para não vender?
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De forma alguma. Tê-la-ia
comprado ao teu vizinho ou ao vizinho deste.
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A atividade principal da
economia financeira consiste em alterar o preço das coisas, crime proibido
quando acontece em pequena escala, mas encorajado pelas autoridades quando os
valores são tamanhos que transbordam dos gráficos.
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Aqui se modifica o preço das
nossas vidas todos os dias sem que ninguém resolva o problema, ou mais,
enviando as autoridades para cima de quem tenta fazê-lo.
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E, por Deus, as autoridades
empenham-se a fundo para proteger esse filho da puta que te vendeu, recorrendo
a um esquema legalmente permitido, um produto financeiro, ou seja, um objeto
irreal no qual tu investiste, na melhor das hipóteses, toda a poupança real da
tua vida.
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Vendeu fumaça, o grande porco,
apoiado pelas leis do Estado que são as leis da economia financeira, já que
estão ao seu serviço.
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Na economia real, para que uma
alface nasça, há que semeá-la e cuidar dela e dar-lhe o tempo necessário para
se desenvolver.
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Depois, há que a colher, claro,
e embalar e distribuir e faturar a 30, 60 ou 90 dias.
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Uma quantidade imensa de tempo
e de energia para obter uns cêntimos que terás de dividir com o Estado, através
dos impostos, para pagar os serviços comuns que agora nos são retirados porque a
economia financeira tropeçou e há que tirá-la do buraco.
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A economia financeira não se
contenta com a mais-valia do capitalismo clássico, precisa também do nosso
sangue e está nele, por isso brinca com a nossa saúde pública e com a nossa
educação e com a nossa justiça da mesma forma que um terrorista doentio, passo
a redundância, brinca enfiando o cano da sua pistola no rabo do sequestrado.
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Há já quatro anos que nos metem
esse cano pelo rabo. E com a cumplicidade dos nossos.
(Este, um texto que nos chegou através da Internet e que transcrevemos
dados o inegável interesse e a implícita oportunidade).
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