CARTA ABERTA
Com a devida vénia transcrevemos o notável documento que é a
CARTA ABERTA, da autoria do professor do ensino superior, Santana Castilho,
dirigida ao ministro da Educação e do Ensino Superior.
Senhor ministro:
Como sabe, uma carta aberta é um recurso retórico. Uso-o, agora que se
cumpre um ano sobre a sua tomada de posse, para lhe manifestar indignação pelas
opções erradas que vem tomando e fazem de si um simples predador do futuro da
escola pública. Se se sentir injustiçado com a argumentação que se segue, tenha
a coragem de marcar o contraditório, a que não me furto. Por uma vez, saia do
conforto dos seus indefectíveis, porque é pena que nenhuma televisão o tenha
confrontado, ainda, com alguém que lhe dissesse, na cara, o que a verdade reclama.
Comecemos pelo programa de
Governo a que pertence. Sob a epígrafe “Confiança, Responsabilidade, Abertura”,
garantia-nos que “… nada se fará sem que se firme um pacto de confiança entre o
Governo e os portugueses … “ e asseverava, logo de seguida, que desenvolveria
connosco uma “relação adulta” (página 3). E que outra relação, senão adulta,
seria admissível? O que se seguiu foi violento, mas esclarecedor. O homem que
havia interrogado o país sobre a continuidade de um primeiro-ministro que
mentia, referindo-se a Sócrates, rápido se revelou mais mentiroso que o
antecessor. E o senhor foi igualmente célere em esquecer tudo o que tinha
afirmado enquanto crítico do sistema. Não me refiro ao que escreveu e disse
quando era membro da Comissão Permanente do Conselho Nacional da UDP. Falo
daquilo que defendia no “Plano Inclinado”, pouco tempo antes de ser ministro.
Ambos, Passos Coelho e o senhor, rapidamente me reconduziram a Torga, que
parafraseio: não há entendimento possível entre nós; separa-nos um fosso da largura
da verdade; ouvir-vos é ouvir papagaios insinceros.
Para o Governo a que o senhor pertence, a Educação é uma
inevitabilidade, que não uma necessidade. Ao mesmo tempo que a OCDE nos arruma
na cauda dos países com maiores desigualdades sociais, lembrando-nos que só o
investimento precoce nas pessoas promove o desenvolvimento das sociedades,
Passos Coelho encarregou-o, e o senhor aceitou, de recuperar o horizonte de
Salazar e de a reduzir a uma lógica melhorada do aprender a ler, escrever e
contar. Sob a visão estreita de ambos, estamos hoje, em relação a ela, com a
mais baixa taxa de esforço do país em 38 anos de democracia.
O conflito insanável entre
Crato crítico e Crato ministro foi eloquentemente explicado no último domingo
de Julho de 2011, no programa do seu amigo, professor Marcelo. Sujeito a
perguntas indigentes, o senhor só falou, sem nada dizer, com uma excepção:
estabeleceu bem a diferença entre estar no Governo e estar de fora. Quando se
está no Governo, afirmou, “tem de se saber fazer as coisas”; quando se está de
fora, esclareceu, apresentam-se “críticas e sugestões, independentemente da
oportunidade”. Fiquei esclarecido e acedi ao seu pedido, implícito, para
arquivarmos o crítico. Mas é tempo de recordar algumas coisas que tem sabido fazer
e que relações adultas estabeleceu connosco.
A sua pérola maior é o prolixo
documento com que vai provocar a desorganização do próximo ano lectivo, marcado
pela obsessão de despedir professores. Autocraticamente, o senhor aumentou o
horário de trabalho dos professores, redefinindo o que se entende por tempos
lectivos; reduziu brutalmente as horas disponíveis para gerir as escolas,
efeito que será ampliado pela loucura dos giga-agrupamentos; cortou o tempo,
que já era exíguo, para os professores exercerem as direcções das turmas;
amputou um tempo ao desporto escolar; e determinou que os docentes passem a
poder leccionar qualquer disciplina, de ciclos ou níveis diferentes,
independentemente do grupo de recrutamento, desde que exista “certificação de
idoneidade”, forma prosaica de dizer que vale tudo logo que os directores
alinhem. Consegue dormir tranquilo, desalmado que se apresenta, perante um
cenário de despedimento de milhares de professores?
O despacho em apreço bolsa
autonomia de cada artigo. Mas é uma autonomia cínica, como todas as suas
políticas. Uma autonomia decretada, envenenada por normas, disposições,
critérios e limites. Uma autonomia centralizadora, reguladora, castradora,
afinal tão ao jeito do marxismo-leninismo em que o senhor debutou politicamente.
Poupe-nos ao disfarce de transferir para o director (que não é a escola),
competências blindadas por uma burocracia refinada, que dizia querer implodir e
que chega ao supino da cretinice com a fórmula com que passará à imortalidade
kafkiana: CT=K x CAP + EFI + T, em que K é um factor inerente às
características da escola, CAP um indicador da capacidade de gestão de recursos
humanos, EFI um indicador de eficácia educativa (pergunte-se ao diabo ou ao
Tiririca o que isso é) e T um parâmetro resultante do número de turmas da
escola ou agrupamento. Por menos, mentes sãs foram exiladas em
manicómios.
Senhor ministro, vai adiantada
esta carta, mas a sua “reorganização curricular” não passará por entre as
minhas linhas como tem passado de fininho pela bonomia da comunicação social. O
rigor que apregoa mas não pratica, teria imposto o único processo sério que
todos conhecem: primeiro ter-se-iam definido as metas de chegada para os
diferentes ciclos do sistema de ensino; depois, ter-se-ia desenhado a matriz
das disciplinas adequadas e os programas respectivos; e só no fim nos
ocuparíamos das cargas horárias que os cumprissem. O senhor inverteu
levianamente o processo e actuou como um sapateiro a quem obrigassem a decidir
sobre currículo: fixou as horas lectivas e anunciou que ia pensar nas metas,
sem tocar nos programas. Lamento a crueza mas o senhor, que sobranceiramente
chamou ocultas às ciências da educação, perdeu a face e virou bruxo no momento
de actuar: simplesmente achou. O que a propósito disse foi vago e
inaceitavelmente simplista. O que são “disciplinas estruturantes” e por que são
as que o senhor decretou e não outras? Quais são os “conhecimentos
fundamentais”? O que são o “ensino moderno e exigente” ou a “redução do
controlo central do sistema educativo”, senão versões novas do “eduquês”, agora
em dialecto “cratês”? Mas o seu fito não escapa, naturalmente, aos que estão
atentos: despedir e subtrair à Educação para adicionar à banca.
Duas palavras, senhor ministro,
sobre o Estatuto do Aluno. É preciso topete para lhe acrescentar a Ética
Escolar. Lembra-se da sua primeira medida, visando alunos? Eu recordo-lha: foi
abolir o prémio para os melhores, instituído pelo Governo anterior. Quando o
senhor revogou, já os factos que obrigavam ao cumprimento do prometido se
tinham verificado. O senhor podia revogar para futuro. Mas não podia deixar de
cumprir o que estava vencido. Que aconteceu à ética quando retirou, na véspera
de serem recebidos, os prémios prometidos aos alunos? Que ética lhe permitiu
que a solidariedade fosse imposta por decreto e assente na espoliação? Que
imagem da justiça e do rigor terão retirado os alunos, os melhores e os seus
colegas, do comportamento de que os primeiros foram vítimas? Terão ou não
sobeja razão para não acreditarem nos que governam e para lamentarem a
confiança que dispensaram aos professores que, durante 12 anos, lhes ensinaram
que a primeira obrigação das pessoas sérias é honrar os compromissos assumidos?
Não é isso o que os senhores hoje invocam quando reverenciam Sua Santidade a
Troika? Da sua ética voltámos a dar nota quando obrigou jovens com necessidades
educativas especiais a sujeitarem-se a exames nacionais, em circunstâncias que
não respeitam o seu perfil de funcionalidade, com o cinismo cauteloso de os
retirar depois do tratamento estatístico dos resultados. Ou quando, dias antes
das inscrições nos exames do 12º ano, mudou as respectivas regras, ferindo de
morte a confiança que qualquer estudante devia ter no Estado. Ou, ainda,
quando, por mais acertada que fosse a mudança, ela ocorreu a mais de meio do
ano-lectivo (condições de acesso ao ensino superior por parte de alunos do
ensino recorrente). Compreenderá que sorria ironicamente quando acrescenta a
Ética Escolar a um Estatuto do Aluno assente no castigo, forma populista de
banir os sintomas sem a mínima preocupação de identificar as causas. Reconheço,
todavia, a sua coerência neste campo: retirar os livros escolares a quem falta
em excesso ou multar quem não quer ir à escola e não tem dinheiro para pagar a
multa, fará tanto pela qualidade da Educação como dar mais meios às escolas que
tiverem melhores resultados e retirá-los às que exibam dificuldades.
Perdoar-me-á a franqueza, mas vejo-o como um relapso preguiçoso político, que
não sabe o que é uma escola nem procurou aprender algo útil neste ano de
funções.
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