NESTE DIA
Há 1 ano
A MINHA CELEBRAÇÃO DE NATAL:
IR AO ENCONTRO DE MIM PRÓPRIO
TOMO II
No meu retorno ao tempo de infância encontrei-me com os meus queridos pais, António da Costa Godinho e Celeste Ribeiro da Silva. E muito gratificante considerei o encontro. Grande satisfação vê-los, como sempre, em perfeita harmonia, sem discutirem e sem levantarem a voz. Pessoas de bem (sem bens materiais) e de correcto trato.
Nós, os filhos, a Carmen e o Brasilino, nunca os tratando por tu, mas com o devido respeito e mútuo afecto: por papá e mamã. Desse relacionamento não partilhou o meu irmão mais velho, Alcides, que morreu com poucos meses de idade. A Carmen, dois anos mais velha que o Brasilino, também morreu nova, com 18 anos de idade, por ter contraído a tuberculose que, ao tempo, era doença incurável.
A ela associada a recordação das aborrecidas e insuportáveis esperas à porta de entrada do salão da bonita cabeleireira, D. Júlia Faria, instalado num primeiro andar, do edifício que, no rés-do-chão, era ocupado pelo estabelecimento de fazendas, Loja Valério, sito na Rua Infantaria 15; por ser obrigado a acompanhá-la e a buscá-la todas as vezes que ela ia “fazer a permanente” – era uma grande estopada que me aborrecia, sobremaneira.
Meus pais nunca bateram nos filhos e jamais lhes gritaram a repreendê-los ou, sequer, a castigá-los. Não lhes dávamos pretexto. Nem eles forçavam oportunidade. Todavia, não éramos uns santinhos de rija formatação; mas sim, santificação mais tendo a ver com a natureza de pau carunchoso…
Esse estádio de serena convergência da autoridade paternal com a espontânea e natural obediência filial, só foi quebrado uma vez, por manifesta desobediência do adolescente Brasilino a determinante proibição, imposta pelo pai: não jogar à bola.
Foi o caso de que o Brasilino numa tarde de mês de Maio e ocupando tempo de falta a uma aula (a cada disciplina podia dar-se um determinado número de faltas no anual período lectivo) estava jogando no campo de futebol, localizado no espaço onde agora existe o Mercado Municipal. O pai surgiu à entrada do campo e logo visto pelos colegas jogadores, ele foi, por estes, de pronto avisado. Então, Brasilino, encetou uma veloz corrida em volta do campo e dirigiu-se para casa, sita no centro histórico da cidade de Tomar (Rua Silva Magalhães), fazendo um sinuoso percurso de uns 1000 metros.
O Brasilino entrou em casa, dirigiu-se ao segundo andar e sentou-se à beira de uma máquina de costura. E ficou aguardando a chegada do pai. Ele, já em casa, subiu as escadas, avançou, decidido, ao encontro do filho e entrando no aposento onde o Brasilino o estava esperando, barafustava com veemência. Então, abeirando-se da máquina de costura, lança um forte movimento braçal na direcção do rosto do desobediente filho - gesto predestinado a ser uma tremenda bofetada; a qual, seria a primeira que aplicava e em força. Mas… não chegou a ser bofetada. Foi pior que isso! Meu pai, errou o alvo e bateu com a mão na cabeça da máquina de costura. Deve ter sentido dores horríveis, que suportou estoicamente. E sem mais delongas, observações, ameaças ou gestos bruscos, virou costas e retirou-se.
Não mais, em tempo algum, se falou de tão triste ocorrência. Embora outras semelhantes desobediências se foram sucedendo sem conhecimento do pai de tão desatinado descendente; que nem sequer tinha jeito para jogar à bola, por sinal, de trapos.
Este relato fica registado como prova de que o Brasilino Godinho era um pecador de alto coturno… pelo menos em termos de insistência na pecaminosa e desajeitada prática futebolística.
Diga-se: pecador, sem nunca ter prejudicado qualquer pessoa ou pecado de forma desonrosa.
E por falar nas enfadonhas esperas da irmã à porta da cabeleireira, como poderia esquecer todas as outras que, tão penosas, marcaram indelevelmente a minha infância? Ainda me revejo na minha primeira espera: na velha e bafienta estação dos CTT, que funcionava no 1.º andar do edifício fronteiro à “mercearia dos Rapazes”, na Rua Silva Magalhães, cerca da Praça da República. - edifício que, se bem me lembro, era de propriedade do Sr. Jacinto Teixeira de Carvalho, em cuja residência fabricava as deliciosas queijadas "ESTRELAS DE TOMAR".
Na companhia da minha irmã, estive em fila de espera (na bicha), impaciente, durante 25 minutos para comprar dois selos postais.
Com essa aborrecidíssima experiência, aos seis anos de idade, iniciei o meu calvário de assíduo participante diário nas bichas que a partir de 1939, com o eclodir da Segunda Grande Guerra, se formavam, dispersas pela cidade, para cada um adquirir pequenas porções de bens alimentares e outros produtos essenciais, como sabão, carvão, petróleo.
Faça o leitor ideia do que era no verão sob sol inclemente ou no inverno suportando chuva, frio e vento forte, passar quatro horas, em pé, numa bicha de centenas de metros, para, por exemplo comprar, diminuta quantidade de um produto com que o estabelecimento fora abastecido naquela manhã ou princípio de tarde.
Ou então ir às 23 horas para a porta do talho que só abria *as 9 horas, Ou, ainda, mulher campesina da Pedreira deslocar-se de madrugada e percorrer oito a dez quilómetros para comprar três quilos de batata para sustento de dieta do marido Leonardo, gravemente enfermo - casos de que tive directo conhecimento.
Verdadeiramente, só quem teve aquelas dolorosas experiências - que chegavam a ser causa de desmaios - vividas pelo Brasilino Godinho e muitas outras pessoas pode dar testemunho e transmitir informação credível do que foi a terrível gravidade do sofrimento de muita gente.
Mesmo quando foi decretado o racionamento, até para adquirir a caderneta com as respectivas senhas, se formavam as malditas bichas. Foi um tempo de muitas dificuldades e de fome. O próprio chefe da delegação da Intendência Geral do Abastecimento, tenente Fernandes, foi designado pelo povo como o Rei da Fome.
Calvário muito penoso que se constituiu como trauma que se manteve ao longo do tempo e que persiste para toda a minha vida. A ponto de tal extremo, que me é profundamente insuportável qualquer compasso de espera, seja: num consultório médico, na antecâmara de entidade oficial, numa farmácia, estação de correios, numa simples interrupção de diálogo, ou de início de celebração de acto festivo.
Portugal não participou na cruel guerra, mas sentiu-lhe muitos dos seus efeitos.
E o Brasilino Godinho dá deles testemunho e os confirma; por tê-los sofrido no corpo e sentido na alma…
Legenda das fotos:
- Meu pai, António da Costa Godinho.
-Minha mãe, Celeste Ribeiro da Silva e os filhos Carmen e Brasilino.
- Minha irmã, Carmen da Silva Godinho
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