Um texto sem tabus…
Obviamente…
comparticipantes, comilões e… contentes!
Contritos? Isso, não!...
1 - Nesta época em que proliferam as crenças esotéricas, os fundamentalismos religiosos e as chamadas crendices populares, quem nos garante que Salazar - ainda em vida arvorado pelos seus dedicados fiéis a “santo” da Santa Madre Igreja; que, facto relevante (aparentemente), se manteve fiel à Maria das suas perenes servidão e coabitação - não surja por aí ressuscitado a rir-se, satisfeito, arrogante, vingativo e a lançar-nos à cara a recordação dos coros das oposições do seu tempo de governação. Principalmente, quando nos períodos eleitorais, bramavam contra o regabofe dos almoços, das jantaradas, das passeatas pelo país, dos itinerários de turismo oficioso pelo estrangeiro e dos gastos exorbitantes dos governantes do Estado Novo à custa dos contribuintes.
E se houver indisponibilidade do antigo chefe do governo do partido único, “União Nacional” (ou dizendo de outra maneira: chefe do partido único do “governo de Salazar”) em se mostrar ao pagode no seu áureo lampejo de recuperado para o nosso convívio e atendendo à situação geral da sociedade portuguesa em permanente rota para o abismo, será descabido admitir o aparecimento de uma sua alma gémea que nos venha transmitir a mensagem de escárnio e de desforra do velho ditador? Desta feita, para nos acenar com a “maçã” da tentação com que Adão atraiu a Eva – a qual, consumada segundo a Bíblia, nos deixou condenados à eterna expiação dos pecados da nossa sujeição humana.
É uma hipótese de todo não improvável neste tempo de vacas escanzeladas, fértil de acontecimentos tenebrosos e de tragédias anunciadas, se considerarmos que através das televisões, das rádios, dos jornais, das revistas e de incansáveis arautos, nos chegam constantes mensagens a anunciar-nos que vem aí um salvador da Pátria.
Todavia, parece que este novo ser messiânico não comunga das mesmas ideias de economia e recato da personalidade Salazar; esta, à época, uma virgem pudica, distante, quiçá, rodeada de salafrários que provocavam as iras dos velhos republicanos e de alguns renegados monárquicos. Ele, o idolatrado ser messiânico dos nossos dias, apesar de sua condição divina, mostra-se mais terra a terra do que o seu homólogo. De modo que envolveu-se afincadamente na recente disputa do sufrágio para a presidência da república dos portugalenses, fazendo-se acompanhar por ruidosas gentes que gastaram à tripa forra em viagens e comezainas. E não só o dito, mas outros mais candidatos ao trono presidencial alinharam pela mesma via do desenfreado consumo alimentar e pela frequência dos indecorosos espectáculos de fingimento.
2 – Na vigência do Estado Novo, as campanhas eleitorais tinham um prazo limitado de curta duração. A propaganda estava muito condicionada. Os comícios eram circunscritos a pequenas superfícies, quase só realizados em salas de espectáculos com a presença de agentes de autoridade fiscalizadores dos cumprimentos das imposições legais e dos condicionamentos ocasionais determinados arbitrariamente pelo Poder; os quais constituíam autênticos garrotes da livre expressão de ideias. Às vezes, haviam manifestações na praça pública que eram severamente reprimidas pelas forças policiais. Curioso que havendo o hábito dos banquetes de homenagem aos próceres do regime nos períodos de campanha eleitoral essa espécie de eventos raramente acontecia. Era a altura de se denunciarem os atropelos da governação. Entre eles, precisamente as exageradas despesas com as extravagâncias das passeatas e das comezainas.
3- Em 25 de Abril de 1974 aconteceu a revolução. Instaurou-se o regime democrático.
Promulgou-se a nova Constituição da República Portuguesa. Gerou-se a ilusão que se abriam horizontes de desenvolvimento. Julgaram-se criadas as condições para grandes avanços promocionais nos domínios da Política, da Cultura, da Investigação, da Justiça, da Administração, da Saúde e, sobretudo, na acentuada melhoria da qualidade de vida dos portugueses. Mais se esperava que os maus hábitos da Ditadura fossem - senão totalmente eliminados - pelo menos, sendo gradualmente postos de parte e substituídos por outros costumes mais consentâneos com um estado de direito e com um sentimento geral de apego aos valores éticos e de respeito aos princípios da moralidade pública. Valores e princípios naturalmente prosseguidos ou insinuados e costumes significativamente evidenciados pela suposta prática corrente dos novos, impolutos governantes e políticos recém chegados à actividade política.
Decorridos trinta anos de vigência da actual República o que se nos depara?
4 - Assistimos todos os dias a jornadas de campanha eleitoral. Os ministros a mostrarem-se nas televisões por tudo e nada e a multiplicaram-se em declarações sem nexo ou relevante interesse público. Os políticos, enquadrados na pluralidade das suas opções ideológicas, estão – diariamente - sem descanso ou interregno, a palrarem para os órgãos de comunicação social contra o governo ou a seu favor, consoante a respectiva filiação partidária. Praticamente, todos os dias os portugueses são flagelados por uma constante e insuportável propaganda eleitoral. Assim acontecendo, não faz sentido ser consagrado em lei “o período de campanha eleitoral”. Menos, ainda, o eufemismo da “pré-campanha”. Onde estão as diferenças, no objecto e nos efeitos pretendidos?
Nos primeiros anos do regime democrático actual as ditas campanhas eleitorais caracterizavam-se por grandes comícios e percursos citadinos efectuados pelos grupos de apoiantes dos candidatos. Não havia almoços e jantares. Nos últimos anos instalou-se a modinha dos repastos e dos desfiles quase sempre uns e outros preenchidos por dezenas de adeptos que vão “a todas”. São espectáculos folclóricos coloridos com muitas bandeiras desfraldadas freneticamente nos momentos das filmagens com o fito de embasbacar indígenas facilmente influenciáveis pelo aparato e pelas aparências das imagens transmitidas pelas televisões. Sobretudo, insinuar, junto dos telespectadores, uma grande adesão popular.
Também, não merecem desprezo – antes devemos admirar… - as grandes capacidades trituradora e digestiva de uns tantos apaniguados, assíduos e incansáveis apreciadores dos prazeres da culinária praticada nos restaurantes, devotados assistentes e celebrantes dos rituais executados à mesa do Orçamento, caricatos e divertidos adoradores de Baco, que não perdem oportunidade de se empanturrarem e de, embevecidos, mutuamente se contemplarem e festejarem. Mas, cuidado! Haja discernimento! Nem se perca de vista que se trata de uma sucessão de festejos pontuais enquadrados no enfadonho e triste espectáculo global do enorme circo político.
Na campanha eleitoral que terminou na derradeira sexta-feira excederam-se todas as expectativas dos estabelecimentos de restauração. Se todas as contas forem saldadas os restaurantes podem atirar foguetes. Tiveram uma excelente época eleitoral. E a propósito: quem será que paga tantas refeições? Aliás, compreende-se: se “é pela boca que morre o peixe” e “com passas e bolos que se enganam os tolos” também será pelos enchimentos dos estômagos dos eleitores que, pelos vistos, melhor se captam e engolem as mensagens dos candidatos e se aliciam votos. Neste capítulo, houve um entusiasmante progresso nos usos e nos abusos do costume... O sistema tendo começado pelas ofertas de beijocas, de aventais, de bonés e de esferográficas, logo passou a electrodomésticos e agora enveredou, resolutamente, pelas obscenas ordenações gastronómicas. É um fartote de espertezas saloias e de mórbidas manifestações de atraso cultural. O que virá a seguir?
Daí, considerarmos que vamos de mal a pior. Até, neste ponto, se ultrapassou o esquema de desvergonha e de expedientes irregulares da era salazarista.
5 – Ainda reportando-nos ao estado a que chegámos confrontamo-nos com a degradação da economia, com o declínio dos índices reflexos de um estado sociocultural que nos coloca na cauda da Europa. Quer isto dizer que o povo está confrontado com uma terrível situação de penúria e de abandono. Sente-se desprezado! Humilhado! Desiludido! Sofredor! Sem esperança de futuro menos oneroso! Um falhanço que nos atormenta, nos consome de preocupações no presente, sem vislumbre de inversão, qualquer que seja a perspectiva temporal que quisermos antever.
Em contraposição, ainda há gente prazenteira que se diverte com pirosas manifestações folclóricas e se alimenta com sofreguidão “à grande e à francesa” à pala do circo político. Para algumas pessoas não existe crise que lhes afecte a cachimónia e lhes perturbe o sossego das suas airadas vidas. Quem disse que os efeitos da crise e os sacrifícios são (alguma vez serão?) repartidos por todos os portugueses?
6 – Assim estamos em Portugal. Porquê? A razão maior enraíza na incúria, na incompetência, na imaturidade e, nalguns casos, na falta de ética e na indecência dos governantes. Estes, na sua maioria, testas de ferro emanantes dos poderes estranhos, ocultos, das sociedades secretas, que sob uma complexa rede de interventores estrategicamente colocados em sectores vitais da sociedade civil e militar dominam, de facto, a nação portuguesa.
Obviamente… os mandantes, os subalternos, os oportunistas, os lorpas e alguns ingénuos úteis, todos displicentemente acolhidos às sombras de frondosas árvores vergadas ao peso de muitos pecados são os comparticipantes; os comilões e … os contentes!
Porém, contritos pelo mal que fazem? Isso, não!...
Obviamente… os mandantes, os subalternos, os oportunistas, os lorpas e alguns ingénuos úteis, todos displicentemente acolhidos às sombras de frondosas árvores vergadas ao peso de muitos pecados são os comparticipantes; os comilões e … os contentes!
Porém, contritos pelo mal que fazem? Isso, não!...
Brasilino Godinho escreve, semanalmente,
às terças-feiras, no Diário de Aveiro
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